O mar olha-me e sorri… e fala, fala… na repetição do seu cálido marulhar. Fundeio, no refúgio de sargaços escarlate, palavras à tona, frases que não flutuam. E ouço um grande ponto de incerteza no fundo da pontuação.
Em terra, os meus dedos são braços de polvo na faina das redes, enquanto no mar, está tudo tão sereno na película da superfície …
Num inusitado desacerto mundano, eles puseram-se a conversar. Um jurava que a Lua estava a brilhar. O outro, no mais benevolente insulto, logo detectou o erro. Garantiu que o Sol é que se notabilizava assim. Que uma coisa era o luar e outra a luz solar. Tão desiguais, como o dia era da noite. E que não percebia o equívoco. Ele ouviu a admoestação. Que não estavam a ver o mesmo. Aí estava o engano. Era a noite que ele via. Nem entendia os fundamentos para importunar a noite. Se o outro o dia sentia, problema o dele. Enrolaram-se pela parede esquinada para disfarçar o embaraço. Na esquina do dia, procuravam a resposta. E discutiam, discutiam. Tanto, que se reencontraram no outro lado da rua. À esquina. A enviesada conversa continuou na afabilidade do desacordo, desatando a discorrer qual seria. Qual seria. Não se entenderam, os rapazes, na tamanha desarmonia. Nenhum prescindiu da sua razão, esgotados os argumentos.
Ele desceu a ladeira, porque tinha a certeza que aquele era o seu caminho. E desceu. No umbral da porta, virou-se para baixo e viu o Sol. Chorou. Soube naquele instante que o seu fulgor intenso lesões graves.
Ele subiu a loutra adeira, porque estava certo que aquela casa era a sua. E subiu. Na ombreira da porta, olhou para o alto e viu a Lua. Sorriu. Sabia, agora, o que é um erro de perspectiva.
O rio está na obliqualidade da paciência da paisagem. E cuido que aquilo que contemplo não é certamente o que sucede. E penso que o rio, que aponto, existe para alcançar o mar. Que a água corre veloz. Como o tempo que se engasga nos seixos do leito deste rio. Eu é que não sei fluir naturalmente, na continuidade do meu caudal. Por desconhecer onde posso desembocar. Não me sei na sintaxe do açude que sossega a água na obediência das regras. No desconhecimento da nascente sôfrega do rio. No desagradecimento das areias receosas do mar.
E é na incapacidade de entender o rio que os olhos espargem lágrimas de noites alarmadas pelo silêncio do mar. Na contaminação das águas doces e salgadas. No plácido e celeste rio que irriga a perplexidade do meu olhar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]