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ponto de admiração

ponto de admiração

23
Mai08

à janela - devaneios com a Rita

Paola

j J

ardim primeiro. Paraíso perdido. Desobediência infernal. Se é verdade que Adão e Eva foram expulsos do paraíso, eu não fui do meu. Se o deles é mítico, o meu é real. Hoje, ambos estão igualados na desgraça. Ambos sucumbiram aos pés de interesses privados, também públicos. O meu éden deve ter dado abrigo a condomínios de luxo, a auto-estradas desenhadas no interesse de alguém. Resta-me a memória.

 

O meu jardim não obedeceu a artes de jardinagem. Não cedeu a modas vindas do mundo. A sua beleza advém-lhe da autenticidade. Da irregularidade das formas, da multiplicidade de vidas, de cheiros e de sabores. O meu horto não sabe a maçã. Celebra as cerejas, as ginjas, os figos e as ameixas. Os pêssegos. E as nêsperas. Tudo com muitas mimosas amarelas.

 

Não foi complicado esquecer a Boneca. A de papelão, com olhos escancarados e pintas a fingir de nariz. Apesar de no livro das minhas recordações lhe ter dedicado uma página, poucas vezes a relembro. Tenho pena do vestido com florinhas cor-de-rosa que a minha mãe costurou para ela. Só dele.

 

Eu tinha árvores e frutos. E os pássaros que gorjeavam no medronhal. E o sobreiro. Um tronco enorme, gordo. As raízes não cabiam na terra, por isso espreguiçavam-se à superfície. E tanto que eu gostava de me sentar nelas… E comia boletas. Bolota é termo de dicionário. Eu gostava das boletas com sabor a terra. À falta de castanheiros, a competição não existia. E eu cantava e dizia palavras com asas nas sílabas. E frutos silvestres nas consoantes. As vogais cheiram a figos. A pontuação é escassa, ficam as exclamações construídas de prazer, de êxtase, de conivência, aclamações proferidas a cada instante.

 

O tempo de calor amarelara quase tudo. O verde escasseava, a escola ficara para trás. Em Outubro tudo recomeçaria. A rotina do regresso cumprir-se-ia sem solavancos. Então, renovar-se-á a saga do óleo de fígado de bacalhau. As provas em folha de 25 linhas com dobra à esquerda. As orações meia hora antes de terminar a aula. As orelhas de burro. A humilhação pública. As minhas, as que me ajudam a percepcionar o mundo, nunca foram constrangidas. Não, não experimentei próteses de imbecilidades feitas em cartão. Asnices pedagógicas à janela. Eu lá me ia livrando das ditas. A Rita é que não. Teve azar. Foi apanhada de surpresa numa linha de comboio, a do Norte. Ela que nunca tinha usado tal meio de transporte!

 

Perguntei à Rita se já tinha estado em cima de uma figueira. Devolveu-me um não imbuído de insultos. Ousou um que parvoíce. Olhei para ela e, sem que me ouvisse, exclamei um que pena, coitada. Infeliz rapariga que só sabe o quinto andar de um imóvel da Praça do Brasil. Encurralada na gaveta de uma cómoda com azulejos verdes. Um dia, Rita, vais comigo. E comerás figos e levar-te-ei ao medronhal. Ela concordou.

 

A Rita bateu à minha porta saída de um Ford Anglia. Não me lembro se super, se deluxe. Um anglia azul-claro petulante. Calçava uns sapatos pretos de verniz. Com uma fivela, creio que preta também. Cabelos anelados, livres. Um gancho vermelho aprisionava-lhe a franja. O vestido era branco. De piquê, soube depois. Nas mangas, em forma de balão, corria o escarlate da fita grega que as completava. Uma fitinha ondulante que se vendia a metro. Grega? Desconheço o móbil. Tive a sensação que aquele vestido acabara de sair do guarda-vestidos das festas de família. Cheirava a naftalina. Eu também tinha um assim e uns sapatos castanhos, de verniz. A Rita estava ridiculamente trajada. Descomposta. Ela vestia hábitos urbanos e era uma menina.

 

- Rita, que vestido magnífico! Que lindo! Não o podes sujar… Vou ter que te emprestar roupa. E umas sandálias…

 

Ela vestiu. E ficou mais bonita. Mais autêntica. A Rita devolveu-me um sorriso transparente.

 

A meio da tarde, já cansadas das histórias da professora Celeste, que também tinha um ford anglia, decidimos ir para a rua. Vamos, vou mostrar-te as minhas árvores.

 

A figueira de figos moscatéis tinha um tronco generoso. Foi fácil convencê-la a trepar comigo. Subimos até ao tronco onde me costumava sentar. Uma tábua, que eu colocara há tempos, oferecia-nos algum conforto. A Rita dizia que dali chegava ao céu. Eu concordei. Nós, os figos, os pássaros e o céu. Repartimos gargalhadas. Sorrisos. Sustos, sempre o ramo se perturbava com as nossas palavras. Lágrimas e figos que disputávamos com pardais, estorninhos e tordos. Esqueciam-se completamente de nós. Ignoravam-nos e escolhiam os figos mais maduros. Debicavam um e outro e voavam. Regressavam mais tarde ou no dia seguinte. E nós comíamos esses figos provados por bicos sabedores. São os melhores, comentava eu.

 

Os olhos da Rita acumulavam deslumbramentos. Encantos de quem se transforma em personagem de livros para crianças. E assegurava-me que aqueles figos sabiam a figos. Prometi-lhe que, no dia seguinte, comeria figos roxos, com lágrimas de mel. Além, revelei com o dedo.

 

Apesar do papa-figos, ave de cores muito vivas, estar em vias de extinção, a Rita espreitou por entre as folhas da figueira. Sorriu e disse que sim.

 

 

 


(imagem de viverparambos2006.blogspot.com/2007/11/fornos...)

 

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22
Mai08

correr

Paola

 

d

à janela - devaneios à chuva

 

 

Corri desenfreada para a rua. O meu corpo franzino não comportava tanta alegria. Uma boneca de papelão! Até então, eu só tivera uma de trapos. A rua era, apesar de tudo, o meu brinquedo favorito. Dava-me tudo o que a minha fantasia prescrevia.

 

Na mão levava um pedaço de giz, furtado na escola no preciso instante em que a professora enfiava uma colher de óleo de fígado de bacalhau pelas goelas da Rita. Na escola primária havia a terrível hora do fígado do peixe, liquido e sem aromas. Uma tortura que não entendia. Nas pernas a determinação de percorrer os sossegos instalados por ali. Não tinha ninguém por perto. Só no lado de lá da elevação de terreno que estremava as terras de semeadura. Uma espécie de fronteira natural que se intrometia entre mim e os outros. E isso afigurava-se muito distante. Tão longe que acreditava que ali não habitava mais ninguém. A minha rua estava aquém de qualquer intromissão humana. A minha liberdade gritava-se na totalidade. Na rua, eu edificava castelos com coberturas de serapilheira e paredes de tremocilha, com flores amarelas. Transformava velhos cacos em pratos de porcelana. Todavia, a minha boneca era de papelão.

 

Hoje, não. A boneca nova afastava-me de qualquer outra brincadeira. Excepto com as minhas admiráveis árvores. Afago-as. Converso com elas. Empoleiro-me nos seus troncos. Mimo-as com carinhos e elas retribuem-me com frutos, com sombra, com beleza. Lembro-me da cerejeira que, antes de me oferecer a carne dos seus frutos, me brindou com o esplendor das suas flores. Apesar de efémeras, tenho tempo para ouvi-las a cantar. Deito-me no chão, bem encostadinha ao tronco, fecho os olhos e espero um pouquinho. As melodias sucedem-se numa fantástica rapsódia de música tradicional japonesa. E eu canto e bailo com elas, vestida e perfumada pelas pétalas de flor de cerejeira. Ao fundo, a uns escassos metros do local onde estou, uma ginjeira exercita expressões de escárnio e de maldizer. Dirige-se-me uma tentativa de agressão verbal. Uma sátira indirecta, uma enxurrada de duplos sentidos. Não lhe oiço o meu nome, mas não duvido que esteja a olhar para mim. Os ciúmes toldam-lhe a razão. Não entende que as cerejas são mais doces.

 

Levantei-me, despedi-me da cerejeira e prometi-lhe que voltava. Que lhe queria muito. Que a sua beleza era alucinante.

 

A minha debutante boneca... A promessa de partilhar com ela as minhas árvores, começava a cumprir-se. Temia que a minha mãe fechasse a porta do jardim. Ou que ele próprio as fechasse. Era assim, quando as horas de comer apareciam transformadas em deveres sentados à mesa, ela afiançava que a rua ia fechar. E eu acreditava. Um jogo só nosso. Eu assumia que sim, ela confirmava o embuste. As mães sabem brincadeiras espirituosas. Sempre que eu violava a implícita regra, coisa que raramente acontecia, o meu ausente pai era transformado em prenúncio de severa admoestação. Por princípio, acautelava zangas escusadas. Não valia a pena! Às queixas, ele aconselhava-a a nada temer, que eu era uma criança, que devia brincar, que por ali apenas existiam árvores. Pois, aí é que está! Refilava ela. E se a rapariga cai, interpelava antecipando danos partidos. A terra é fofa, concluía. Portanto, de nada me favorecia criar embaraços domésticos. O meu pai sempre me compreendeu, apesar de optar por frequentes silêncios e lhe bastar um encolher de ombros. A minha mãe ficava arreliada com ele. Tu estraga-la com mimos, é sempre o mesmo. Eu ia para a cama dormir à espera que o amanhã chegasse. A minha mãe deve ter-se esquecido do lanche…

 

Resolvi mostrar a figueira de figos pretos à minha boneca de papelão. Uma árvore redonda, frondosa, média na altura, generosa nos frutos. Feminina. Única na sua espécie de figos pretos. Melosos. Especiais. Carnudos. Gulosos. O encanto da figueira reside mesmo no fruto. Árvore estranha. Feia quando despedia. Egoísta. Não aceito que encubra as flores. Que não as partilhe. Dissimula-as nos frutos. Só pode ser por amor. Ou por vergonha. Não quer que as cerejeiras a vejam. Despida é feia. Acorda desgrenhada no caule tortuoso. A casca cinzenta e lisa é pele de cetáceo. Os ramos frágeis são pernadas de miséria. Sobram os figos que não são pretos, antes roxos. A boneca não entendia a conversa. Eu, propositadamente, não lhe permiti nome. Boneca servia. É que não havia outra. Prometi-lhe que um dia a levaria junto dos figos moscatéis.

No chão de erva pintada de verde-macio esperávamos que os figos amadurecessem. A minha mãe não me chamou e eu adormeci. Cheirava a terra fresca, a azedas, a papoilas, a tronco de figueiras, a figos verdes combinados com os maduros. A Boneca não sei se dormiu, nem nunca saberei. Despertei atarantada. Por momentos esqueci o lugar e os eventos daquela tarde. Ao meu corpo chegavam pingos de água matizados de verde. Reflexos das folhas da figueira. Cada gota passava por mim e desfazia-se no chão. Os pingos engrossados... intensos. Onomatopeias vermelhas. Sentia-me perto do fim e com um aperto no coração. A Boneca era de papelão. Depois da chuva veio o vento. Corri com ela nos braços. Aos poucos senti que o seu corpo se ia convertendo em nada. O vestidinho com florinhas cor-de-rosa era, cada vez mais, um farrapo encharcado. A Boneca ensopada. Boneca desfeita.

Entrei em casa, chamei pela minha mãe. Dei-lhe um beijinho e ela barafustou comigo. Que eu já deveria estar em casa, que a chuva não tardava - e há tanto que chovia -, que ia contar tudo ao meu pai.

 

- Mãe, a Boneca amoleceu e desfez-se... Morreu!

 

 

 

 

 

 

- As bonecas não morrem...Tens fome, não tens? Que tal uma sopinha quente?

 

 

 

 

Eu fingi que sim. Ela fingiu também. Amanhã, não vou aos figos. – Garanti. Depois, fui para a cama. Amanhã terei mais um dia para percorrer ociosamente.

 

 

 

- De bonecas não gosto muito, mas à chuva insisto em querer. Hoje, se eu fosse criança hoje? Não sei se queria...

 

 

 


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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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