Voltei ao local do crime. Mandam as regras. Cumpra-se a etiqueta. Uma nuvem de malmequeres amarelos cobria o chão... tal como no outro dia. Tive a sensação que se cumprira ali o milagre da multiplicação. Naquela imensidão amarela vi umas quantas papoilas. De imediato percebi... elas eram a raiva, o sangue, a revolta do meu gesto impensado. Eram a alma das margaridas roubadas à vida. Vexame! Senti-me insultada... por uma flor, por uma papoila! E as papoilas são vermelhas... Senti-me feliz por entender que a defesa das espécies em risco estava naquele vermelho dito raiva. Irmanadas na dor do lince ibérico, da cegonha, do sável, da lampreia, da cegonha, do azevinho, do carvalho ... Como elas se protegem! Que insanidade, a minha! Apanhar margaridas amarelas...
Nos olhinhos das margaridas brancas descortinei troça, piedade... Naqueles olhos amarelos, vi complacência tingida de sobranceria - Coitada, não sabe o que fez!
Uma delas, mais irreverente e agitada, talvez pelo vento que acabara de chegar, exclamou com arrogância :
- Deixa lá, são selvagens! E amarelas...
Mirei-a de alto a baixo. Medi a pequenez e a fragilidade do seu caule e respondi:
Uma sala de aula igual a tantas outras... Mesas desajustadas às pernas compridas dos alunos; cadeiras curtas, desproporcionais ao tamanho deles. Um quadro preto marcado pela varicela que ninguém apagou. Umas janelas que há muito não cumprem a sua função. Umas paredes incolores, frias, nuas.Vinte e quatro alunos sentados. Uma professora com outros tantos enunciados na mão, pronta a confirmar o medo que lhes sobrava dos sorrisos acinzentados. Uma porta escancarada, a cumprir-se janela. Um dia de teste. A tarefa foi iniciada ao mesmo tempo. Cabeças mergulhadas no papel, dedos nervosos e inquietos passavam para o papel conteúdos aprendidos, conteúdos já esquecidos, conteúdos a haver...Porém, bem cedo começaram as desistências... Cabeças no ar, rostos atormentados, talvez arrependidos por não terem estudado. Por não me terem escutado. Eu lia um livro. Umas quantas páginas, depois parei. Cansei-me... A leitura é cumplicidade, é intimidade e eu tinha muitos olhos a mirar-me. Não sei se por inveja, se por admiração ou se por estranheza... Não têm hábitos de leitura. Um ou outro já me segredou que nunca ninguém tinha lido para eles, apenas eu... À noitinha vou retomar a leitura. Olhei para um, depois para outro e a seguir para a porta... Um arbusto de folhinhas miudinhas, de flores branquinhas confirmava a Primavera. Apesar da distância, entrou... trouxe raminhos frágeis, frescos, insinuantes até à sala. Era o vento que lhe sussurrava segredos, coisas do tempo. Era o vento que lhe cochichava que na Primavera tudo pode acontecer. Frio, vento, sol, chuva, calor... que o ciclo se repetia. E à minha memória chegou a redacção que a minha professora da terceira classe sempre pedia nesta altura do ano. Aquela que, invariavelmente, explicava que a Primavera é a primeira e mais bonita estação do ano. A minha escrita confirmava de forma muito sabedora que os dias começavam a ficar mais amenos e maiores. Que a natureza ficava repleta de cores vivas e tudo era muito belo. Nunca me esquecia das borboletas e das andorinhas... nem das roupas frescas e dos frutos vermelhos e da erva verdinha. Acabava sempre com um conselho muito ecológico. Que devíamos cuidar das árvores e até plantar mais algumas. Não me deram atenção e estamos como estamos. Tocou... não sei se o primeiro se o segundo toque - porque há dois! Recolhi os testes. A demandada começou. Que respondeste na número dois? E na seis? O que é uma oração? E a análise sintáctica?...E lá foram para a brincadeira com as mesmas certezas com que entraram. As dúvidas deixaram-nas nas respostas que escreveram. Os meus alunos não viram o arbusto de flores brancas e folhas miudinhas. Estavam de costas para a porta. Não viram a Primavera entrar na sala. Estavam distraídos. Não leram a minha composição sobre as borboletas e os frutos vermelhos. Não gostam de ler. Alguns nem notaram que li umas quantas páginas de um livro. Excepto a A., uma menina de sorriso franco. De gargalhada aguda, talvez para se defender do rigor da vida. Chegou até mim, sorriu, estendeu uma mão ávida de afectos e disse tome, é para si... Olhei, não percebi de imediato e ela insistiu fiz para si, é um marcador para não se esquecer da página... Da página? perguntei. Sim, não estava a ler um livro? É bonito?
Ela foi-se embora e eu coloquei o marcador, uma tira branca de papel com autocolantes... florzinhas, na última página que lera. Para não me esquecer do sorriso honesto e rasgado da A. Obrigada, minha linda.
Numa aula condenada à monotonia de um teste dedicado ao texto narrativo aconteceu poesia. A da flor, da Primavera, do livro e da A. ... e a do marcador de papel, com floritas e um beijinho.
" As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças , sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas. (...) Quem sabe se um dia virei a ler vez outra história, escrita por ti que me lês , mas muito mais bonita?... "
José Saramago
Os hipermercados são, tal ilha em época alta, uma superfície de bens rodeada de consumidores por todos os lados. Uns compram, outros não. E nestas coisas, como nas outras, temos sempre que contar com os mirones. É um vício. Uma doença muito actual, muito moderna, muito civilizada. Ao fim-de-semana não há passeio melhor. Melhor, mas mesmo muito melhor é quando o hiper cabe dentro de um centro comercial. A êxtase é total Tudo ali... tão perto de si... Só não entendo lá muito bem é essa coisa do prefixo... por uma questão de tamanho.
Sou gente! E depois? Também vou ao hiper ... e que jeito ele dá. Tem lá tudo!!! Até os amigos, os conhecidos, a família, os alunos, os pais dos alunos, os vizinhos, os outros que não conhecíamos de lado nenhum e com quem se troca meia dúzia de palavras de circunstância. Balelas, lugares-comuns, é verdade, mas conversa-se... Que outro local reúne assim tanta gente da mesma tribo? Nenhum... que me lembre.
Por entre corredores e prateleiras, milimetricamente preparadas e dirigidas ao negócio, lá cheguei aos livros.
Amo os livros. Pelo que dizem, pelo que calam, pelo seu cheiro, pela textura da sua pele, pela cor do papel... não daqueles que são escritos a martelo, como a água-pé que se fazia lá na terra. Uma zurrapa! Gosto de livros honestos, bem vestidos, vaidosos, charmosos. Lusos, de preferência . O que é nacional não é bom ?
Ia eu a caminho do livro mais próximo, quando um chamou por mim. Já não me lembro como. Não sei se com a cor, se com as ilustrações, se com as palavras que lhe cobriam as páginas... Talvez tivesse sido o autor. Talvez. É bem provável que tenha sido Saramago... Mesmo em Lanzarote, ele faz-se ouvir. Nem sempre tenho disposição para o ler. É necessário ânimo , coragem até. Naquele dia, já à tardinha, aconteceu. Tão bonito, aquele livrinho. Lindo! Magnífico ! Doce, terno... Peguei num e depois noutro e ainda outro. Ofereci dois! A duas amigas. Gosto delas, gosto do livro...
O outro? Esse é meu! Não o dou a ninguém! Estou a mentir, desculpem. Dá-lo-ei a um dos meus netos... Seguramente. A história? Contá-la-ei aos dois...
E digam-me lá se os hiper não são fantásticos?
Aqui vos deixo A Maior Flor do Mundo , em espanhol que também é língua de prémio Nobel.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]