A tarde desabava pela estrada. A desafiar as cálidas horas que tocavam nos sinos da igreja. De longe chegavam os acordes que tateavam a resistência do tempo. A força do aplauso murchava à medida que o eco desmaiava pela ladeira.
Apenas uma flor se encostava à parede no orgulho da cor. E de tanto a olhar pensei que a ouvia.
Os sonhos murcham, mas não podem ser arrancados pela raiz. E de vez enquanto chove. Uma chuva serena e doce. Que os alimenta e os veste com farrapos de seda.
Gosto de estender o meu olhar pelo verde. Trepar às árvores. Agarrar as folhas e rebolar no chão esmeralda-matizado. Mas o que eu gosto mesmo é de olhar… perceber a pequenez dos meus olhos e esfregá-los de espanto verde-claro. Cair redondamente no horizonte e acreditar que há mais. Que o verde continua o lado de lá. Perder-me no seu silêncio e deleitar-me com o cheiro a alecrim. Ai, as mimosas! Distraio-me no amarelo da carqueja e confundo-as com o Sol! Mesclam-se as cores, misturam-se os perfumes, fundem-se os bem-me-queres.
Há pouco, vi o verde. E era tanto, tanto, tanto! Há pouco, vi flores para te dar… e comecei a duvidar que o verde seja uma cor.
A cor do verde amanheceu. Fez-se azul-céu de passados esverdeados. Depois, pintou-se de verde-mar e eu naveguei por um oceano que logo se amansou… andei pela alameda de espuma, viajei na ponta das ondas e perdi-me na busca de mim. Achei reflexos dos meus pensamentos… As flores não as colhi. Arrependi-me do repentino impulso...
Na mais total frondosa elevação , respondia pelo nome de feto sem se importar com o rigor do baptismo científico. Verde-feto, de cor, espreguiçava-se na verticalidade do deleite. Escrevia palavras de amor puro, à janela. E todos lhe pediam mais, tal era a sua aptidão para poetar. Por isso, as suas folhas se diziam pínulas e muito recortadas para poemas declamar.
Na sua memória, havia fetos correndo pela beira do canal. De verde-feto mais intenso, feitores de versos que poucos se atreviam a ler. Ela olhava-os enlevada e descobria-lhes a paixão. Envolvidos nos pinheiros, eram troncos alucinados pela excitação. Havia quem assegurasse ser obra de qualquer deus enamorado. Acusavam um ser alado de rosto ameninado. Mas nunca ninguém o viu. Nem foi notícia de jornal. E, ainda hoje, eles desabrocham no mais tocante conúbio de corpo e alma. As suas amantes folhas ressumam seivas purificadas com o seu próprio sabor, na ânsia de propagar a chama.
Ela trouxe pedaços dessa paixão e plantou-os num vaso. À janela. Para que todos vissem que o amor se dizia na capacidade de apagar os erros que lia nos poemas. E ela amava-os também. Todos os dias, os regava com afecto. Eles diziam-lhe bom-dia no entusiasmo de um idílico cuidado e cresciam, cresciam… sempre muito verdes. Da cor do verde-afecto que acontecia, no outro lado da vida, à beira do canal.
Olho e pressinto o canal murcho pela míngua de água. Receio que os fetos tenham sucumbido à emboscada do tempo… Que agonizem com a lentidão com que alcanço o horizonte. Onde a terra sabe a mel e os fetos se dão no a-mar. Daqui, não os avisto… Nem a janela. E se não vejo a janela, não descortino o vaso onde os fetos fingiam viver na concordância da beira do canal… Ela também cedeu à cilada do tempo. Já não os pode regar. E os fetos provaram o sabor da ausência do beijo pela manhã. Eu demoro-me neste murchado olhar. Para todo o sempre!
A admiração é o espanto da alma e do corpo. Um não sei quê que nos faz tentar perceber o que nos cerca. Admirar é agir. Problematizar, por isso descobrir, conhecer. Romper com as evidências.
Admiramos as montanhas, os rios, as flores, os risos das crianças ... Abrimos a boca de espanto junto à s Pirâmides do Egipto e lamentamos os acidentes de viação na A25. Cantamos a Canção do Mar junto à Torre de Belém e calamos as afrontas aos professores. Sentimos remorsos por não termos ido à praia no fim-de-semana e passamos a tarde num centro comercial. Emocionamo-nos com um poema e choramos a violência doméstica que faz manchete no jornais. Duvidamos da capacidade da ciência para descobrir a cura para o cancro e celebramos a vida. Irritamo-nos com a chuva e deleitamo-nos com um passeio à beira-mar. Vociferamos contra a gaivota que poisa no parapeito da janela e enclausuramos canários na gaiola. Maravilhamo-nos com a nossa língua e escrevemos com erros ortográficos. Transpiramos com o calor e coleccionamos postais com o pôr-do-Sol.
Olhamos.Tacteamos. Saboreamos. Ouvimos. Cheiramos. Mas também rimos e choramos. Por causas dos sentidos.
A admiração não se procura, acontece. Assim, devagarinho perante o estranho, o admirável. É ver, é olhar coisas simples. Eu ainda me admiro com banalidades.
Por tudo isto, ou mesmo por nada disto, hoje admirei-me com a beleza das margaridas amarelas. Muitas, de mão-dada numa terra de ninguém. Colhi um raminho, pequenino e coloquei-o na minha cozinha na esperança que ela ficasse amarela também. Puro engano! Que imprudência inútil!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]