Quando vim ao mundo (ovo prodigioso) já ele cantarolava. Fui adolescendo e esse crescer quotidiano alicerçou-se numa distribuição de tudo. No espertar da manhã, no entusiasmo tão inquietante como arrebatado. Superior a relação que se estabeleceu entre nós.
Distinto galo! Jovial na forma, galeria de cores, galante no falar, gaiato nas notas de acordar. Todas as manhãs. Naturalmente. Poeta, também. Daqueles que veneram as palavras e as letras. Que verbalizam as sílabas delirantes de contentamento. Alheado de mundividências. Presente na emoção e na paixão que são a razão de eu permanecer aqui. No modo de dizer erva e estrelas-do-mar e terra e formiga e eu e tu e nós… tamanha sensibilidade! Enorme comoção. Com coisas simples. Com o desadormecer do Sol que se erguia para além dos montes. E chegava com flores. Papoilas. Rubras papoilas.
Triste galo. Enredado na teia do galinheiro. Destino a cumprir, calvário resignado, fado cantado pela manhã. Asas penadas que se derramam pelo galinheiro.
Amor amado, o nosso. Inveja da galinhada, claro. Tratados, crónicas, jornais, romances… Nada! Não houve notícia de amor assim. Na linguagem, na erudição.
Compreendem agora como fiquei? A que peso me entortei? Ao Amor. Traí propósitos e quebrei promessas. Apenas ambicionava ser uma galinha afortunada que rumorejava:
- Bom dia, Amor.
- Talvez um dia…
Embora um dia seja excessivamente tarde… e o muro muito alto. A capoeira é grande. O chão é plano. Sem ímpeto para saltar.
Cheguei a casa com o corpo gordo de sorrisos. Restos de brincadeiras ameninadas ao intervalo. No princípio e no fim da escola.Tinha saído ainda o sol se espreguiçava no leito vestido de azul celeste. As galinhas dormitavam acocoradas nos fenos amarelados mudados diariamente. Outras sossegavam equilibradas no poleiro em poses acrobáticas. De vez em quando cacarejavam maledicências e blasfémias frívolas. É que o galo já lhes apregoara a manhã. Que elas recusavam. O galo era o protagonista do amanhecer. Ao resplandecer do dia, cantava para acordar quem teimava em dormir e sonhar que o mundo era feito de sapos. Ali mandava ele.
Excepto uma que tinha doze pintos para zelar. Chocara-os com enternecimento e orgulho comum à maioria das mães. Sem ter a certeza que todos os ovos lhe pertenciam. Isso era um facto que não lhe interessava. A maternal determinação libertava-a de tais ninharias. Queria parir e pronto. Imaginava-se a maior mãe do mundo. Mesmo que o seu mundo estivesse circunscrito por cercas de arame enleado nos arbustos cortados em forma de presídio. Nada mais lhe importava do que cumprir-se na maternidade. A galinha é uma enorme mãe. Adoptiva ou não. Ser mãe de ovos de outras galinhas não a preocupava. Seriam também seus filhos. Esperou pacientemente durante vinte e um dias. Não perguntava de que barriga chegavam, só que coubessem debaixo o seu corpo. Para os aquecer. Para os proteger. E discorreu que todos os filhos nascem do coração.
Pintainhos dependentes. Joviais. Áureos. Buliçosos. As mães nunca dormem descansadas. Ela também não. Porque era mãe. Inefável instante. Os bicos pipiaram a natureza a ampliar-se. As cascas dos ovos rumorejaram vida. A galinha rendia graças ao céu ao mesmo tempo que suplicava ao galo que se calasse. Não fossem eles acordar.
Muito de mansinho, harmonioso e doce, um canto embaraçava o perplexo galo.
Dorme, dorme
Meu pintainho adorado
Dorme, dorme
Meu filhinho guardado
Ó, i, ó ai!
Faz ó-ó meu lindinho
Que te quero muito bem
Dorme meu filhinho
Tua penugem também
Ó, i, ó ai!
Se fosses um passarinho
Até poderias abalar
Assim voas baixinho
Mas aprendes a amar
Ó, i, ó ai!
Dorme, dorme
Meu pintainho adorado
Dorme, dorme
Meu filhinho guardado
Ó, i, ó ai!
A minha mãe acorda cedo. Mas não sabia canções de embalar. Nem tinha tempo. Nem voz. Já tinha despachado o meu pai. Prepara-lhe arroz de tomate e sardinhas fritas. Ele gostava. Eu também. Ela nem por isso. Chegara a minha vez. Pequeno-almoço tomado, mãos e dentes lavados e vamos lá vestir. Despacha-te! Gritava sempre comigo, mesmo quando o tempo sobrava. Isso não! Veste o amarelo. E eu vestia. O do laço atrás. E eu atava e desatava a fita que me atrapalhava. Não te sujes! Claro que não, mãe. Uma criança nunca se suja de propósito.
E lá fui. Carregada de livros e de recomendações. Agora era a vez do caminho. Não aceites boleia de ninguém! Tem juízo. Eu até me considerava uma menina atinada. Logo, para que servia aquela oratória todos os dias?
Um dia contou-me que eu dormia num berço. Que o embalava em movimentos ritmados e cadenciados. Enternecimento e enlevo. Carinho e amor. E cantava.
Eu estava na peneira
Eu estava peneirando
Eu estava na peneira
Eu estava namorando
Ó, i, ó ai!
Eu olhava para ela. Depois sorria e adormecia. E sonhava que a minha mãe era mesmo mãe-galinha…
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]