sigo pelo passeio do lado direito. O Ti João continua amparado ao muro branco da casa das nespereiras. Ainda não entendeu a história dos genéricos. Pede que alguém lha conte outra vez. Não percebe nada de publicidade. Amanhã é sábado, dia de compras. Um, dois, três… acção! Já comprou. É assim que eles abanam o Ti João. Inventam-lhe ansiedades. Ele está velho, cansado, já pouco resiste. Afirma que também é gente. Afiança que não vai desaparecer deste mundo sem provar, nem que seja uma vez. E compra. E come. Uns exagerados! É tudo mentira! Confessa que se não fosse a publicidade não tinha conhecimento de nada. Que a televisão lhe destapa o que a vida encobre. Comprou duas embalagens. Uma comeu-a de imediato A outra colocou-a no frigorífico. O papel amarrotado continua agarrado à porta. Nunca se esquece de tomar os comprimidos a horas.
Uma promoção, disseram-lhe. Leve duas e oferecemos-lhe uma bola. Escolha. Aquela branca e vermelha. Escasseava-lhe o corpo para pensar em usá-la. Colocá-la-ia na cozinha. Num cantinho junto à mesa onde estende a sua consciência depois da sesta. Confidente de mágoas inconfessáveis. Por causa da toalha prostrada na mesa da cozinha. Junto à cesta das laranjas, o saco dos medicamentos ostenta alívios de oito em oito horas. Para não se esquecer. Tem que poupar passos e pernas e memória. Uma prenda. E sorria. Já se tinha esquecido da última que recebera. Nem tinha a certeza de ter recebido muitas. Talvez nenhuma. Não valorizava obséquios mercantilizados. Com data condenada. Não exercia presentes marcados no calendário. Gosta da bola porque é vermelha. Linda de ver, concluía sempre que a apreciava.
Nunca tive a certeza se o Ti João se referia à bola. Intimidades secretas na vida do homem.
O moço insiste num jogo a solo. Num conjunto de envergonhadas técnicas e tácticas que expõem a competência do seu executante. É premente avaliar o rendimento do atleta. Ignoro o resultado. Não lhe pergunto. Ao intervalo vou lá saber. E indago também o nome da equipa com quem está a jogar. Porventura de um escalão secundário. Nunca ouvi falar deles. Não me atrevo a interromper um jogo colectivo imitado na solidão da rua. Deserta de jogadores improvisados no relvado verde-alcatroado-fantasia.
O resto da equipa tem falta de comparência. Presumivelmente estão em casa. No quarto ou na sala. De olhos cativos e com mãos amarradas. Feitiço de botões coloridos. De publicidades em hora nobre. Porventura a jogar um jogo de equipa simulado. Programado. Desenhado num ecrã verde-relvado-estádio. Com bruaá ao vivo. Rumores confusos de muitas vozes mescladas com emoções plurais. Com agitações fingidas. Ali, os meninos não despelam os joelhos. Não espatifam as calças de ganga rasgada. Estão sentados. Calados. Sossegados.
O futebol do Ti João nunca foi a fingir. Entregou-se de verdade. Ele e os seus parceiros ao domingo de manhã. Confessa que não percebe nada de videojogos. Prefere a rua. A eira.
O Ti João está moído. Entra e senta-se. Olha para ela, para a sua bola-prémio. Toca-lhe com a bengala. Um remate de meia distância. Forte. Seco. A culminar uma fantástica jogada individual. A vida é um jogo de solidão. Sem intervalo.
E lá conclui que golo marcado com botão de consola não tem cheiro. Nem voz. Nem abraços. É golo e pronto. Não é golooooooooooooooooooooooooooo! Não tem sabor. Não tem não!
A estrada atravessa o burgo. Um enorme tapete negro-buraco, ornado por tiras de cinzenta calçada seguia-a num apoio incondicional. Caminhavam lado a lado. Rotas, luzidias, consumidas, moídas, esmurradas. Desniveladas. Titubeantes. Amarrotadas pelas passadas dos caminhantes enfurecidos com a faltar de parqueamento para a carrada.
As pessoas agitam-se de cá para lá. Às vezes ao contrário. Apressadas umas, gastas outras. Todas carregam sacos com sonhos. Projectos para o tempo que ainda têm. As que se encostam ao muro da casa das nespereiras tem nas mãos, derrubadas por artrites e artroses, sacos de plástico do supermercado repletos de caixas de maleitas determinadas na consulta da madrugada. Das horas de espera. Na mendigagem de um parecer. Na consulta das nove. Foram acudidos com os olhos presos ao papel das triplicadas prescrições. No saco conduziam promessas de cura escritas em letra muito miudinha. Em bulas que não se cansavam de dar mandamentos, sem entender que eles não as conseguiam ler. Os olhos já estão muito cansados. A cabeça já não dá. O ti João não teve tempo de ir à escola. Começou por podar as vinhas. Mais tarde, estabeleceu-se por conta própria. Um café de bairro. Coisa pequena, mas dava para comer. O ti João nunca pediu muito à vida.
Eu sigo pelo passeio do lado direito. Nos meus pés arrasto a canseira do dia e os arranhões que os sapatos, que calçara ontem, me fizeram no dedo grande. É coisa pouca, mas dói. A meu lado, a minha sombra obstina-se em mostrar-me lembranças. Memórias. Temores. Fraquezas. Uma curta-metragem com protagonistas desconhecidos no mundo das fitas de cinema. Por isso, os meus preferidos.
E de repente, o pavor alastra-se. Os meus olhos embaciam-se e reflectem o negro do asfalto. Borboletas esvoaçam no meu ventre como se transportassem medo nas asas multicores. Um estremecimento percorre-me o corpo, de um lado ao outro. De alto a baixo. Sinto que na minha cabeça se acha um mundo de vidas.
O ti João permanece encostado ao muro branco da casa das nespereiras.
- Bom dia! Está melhor?
- Bom dia. Nem por isso… agora tenho…
E do saco, que lhe deram na farmácia, puxou pelo rol das doenças todas. As que tem. As que não sabe que tem. As que há-de ter. E nunca saberá que tem.
Ao fundo da rua, numa praceta inventada na vontade das crianças, um rapaz joga à bola. Único. Ele e uma bola redonda pintada de branco e preto. Com a marca bem à vista. Os miúdos gostam de etiquetas importantes. Sobretudo nas bolas. Nomes repetidos na televisão. Campanhas publicitárias criativas. Inventadas por criativos publicitários. Seres diabólicos. Predadores de vítimas vulneráveis. O catraio e o ti João. Mal sabem ler. Entretêm-se a ver os bonecos. Os homens da publicidade estudam tudo ao pormenor. Espiam-nos. Cheiram-nos as vontades. Descobrem-nos as vulnerabilidades. São uns inventores de ansiedades. Gerem ruídos e gestos esquisitos para conquistar a nossa atenção. É claro que o interesse vem logo a seguir. Salivamos. O ti João foi a correr questionar o farmacêutico sobre os genéricos. Não percebia que custassem menos se saravam o mesmo que os originais. O boticário lá explicou que a substância activa era, de facto a mesma, que se tratava da marca. O ti João não entendeu nada. O rapaz que continua a jogar à bola explicou-lhe, mas o homem ficou a magicar no assunto.
O desejo cresce. Anotamos o nome da coisa no papelito alapado na porta do frigorífico. Com um íman em forma de cenoura. Com um nariz e uns olhos muito grandes. Negros. Junto a um pedaço arrancado a uma folha de um caderno de linhas. Letras grandes, numa caligrafia tosca, mal desenhada, quase indecifrável! Ofensa doméstica aos manuscritos antigos que expõem a beleza feita caligrafia com requinte de arte. O ti João nem sabia que existiam livros desses. O que ele não podia era esquecer-se de tomar o remédio por causa dos bicos de papagaio.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]