… estendendo fios de desalento na seda da luz… entro no casulo de sonhos suspensos... na inaptidão da aparência... sairei crisálida da esperança no alegre voo da essência… mesmo que exterminada por caçadores de polinizadoras borboletas…
Das ervas desejaram o Sol. Na avidez do mais. Na renúncia do nada. Famintos, exultaram sedes insaciadas e beberam tragos de prazeres camponeses. E os corpos atreveram-se a querer. Cobertos de papoilas, na maleabilidade do vermelho. Ébrios, elevaram as taças do ópio e saudaram o infinito. Devolveram os beijos num ímpeto de raiva. Entregaram os corpos num enleio profundo. Tocaram-se com estremecimentos acetinados, bordados com mãos de alecrim. Perdidamente, no prado com cheiro profanado. No beco onde os poetas seduzem as palavras. Enfeitiçam os versos e o vento põe-se a bailar. A brisa corria na tranquilidade da utopia, num trilho de silêncios mordidos. Só as papoilas ousavam entoar maviosidades carminas. Eles consumiram-se e voaram. Na sinestesia das colinas que ladeavam o vale.
As asas atearam-se no vermelho quente do Sol. Tão quente! Quiseram, um dia, escalar o Céu. Experimentar voos proibidos. Quentes, mais quentes. Sempre no vermelho dos corpos esfomeados. Sangrentos. Mas as asas não suportaram a subida… e esmoreceram num chão de papoilas. Na desobediência a um sinal vermelho. Que disseram verde no delírio da transgressão. No prado… à beira da voragem da vida. Ali, onde as rugas que vincam as asas sorvem os alucinantes licores das papoilas. Na demanda da cura.
… e a menina sentou-se ali. Na desventura que lhe encarquilhava o olhar. Que lhe chicoteava o sono. Mas estava na reverência do dever.
… e a menina escreveu que o pior dia da sua vida [que vida tão pequenina] fora no dia em que começara a crescer. Só porque lhe acrescentaram o entender.
… e a menina amaldiçoava o dia. Tanto! Que tanto lhe parecia tão pouco. E continuou a escrever. Uma história de assustar. Com ébrias figuras. Com assaltos ao dormir. Com cardos a germinar pelas assustadas paredes do quarto. De noite… até ser dia de começar a escrever… sobre uma abelha-flor que lhe aferroava o crescer.
... e a menina ainda não sabia dizer que uma rosa era uma flor. Que das alturas descia. Sem espinhos. Com pétalas da cor do sono. Dos sonhos. De menina...
…olha-me. Fixamente nos olhos. Assim… de longe, para que não sintas o orvalho que escorre em lava até à minha voz. Para que não saibas que as ervas arrefecidas se esvaecem nos prantos. Na jactância brilhante da cor que presumes. Vai-te, vaidade da efemeridade acordada. As tuas pétalas, agora acetinadas, morrerão na esquina do tempo. Às mãos de argamassa com que elevaste a distância. Não galgarás o muro, sem a verdade dos cimentos. Na certeza que há fundamentos com cor.
…olho-te. Amarradamente ao fim. Assim… ao longe, para que conheças a dissemelhança das cores… de longe, para que, no horizonte cinzento-branco do meu olhar, vejas que o cinzento se desconcentra numa alforria de vinhos…
…olho-te.De tão longe. Mas sei o arco-íris da tua pele… e o sabor que exala das pétalas carminas… com que me vencias. A mim. Assim…
Nesta clara manhã de sol inquieto, acordei com um inusitado desejo de ver o mar. Aparelhar a cama e zarpar. Bracear à bolina, na fé de um vento propício. Neste existente tempo de caravelas perdidas no azul-partida, adivinho as velas a bailar. Asas abertas ao vento… ancoradouro da minha escolha… refúgio de anémonas-do-mar… de rosários e corais… É a opção que dói! A impossibilidade que rasga a pele.
Eu olho-o na carícia do meu olhar e largo a prioridade… velejo à deriva… na incessante busca da maré do princípio. Porque há beijos para além do mar… e, no rio, os búzios entoam cantigas de chegar.
Aos domingos, dava passeios pela avenida principal. Alindava-se para os ver passar, invejando-lhes a agilidade. Até a ganância do primeiro beijo. Beijo doce. Salgado. Perfumado com odores de laranja. A turbulência das mãos na brandura do olhar. Mãos de seda que buscavam o Sol, nas vísceras do tempo. Na impermanência do querer.
Do lado de cima, tudo lhe parecia muito do mesmo. Na monotonia dos gestos. Na incontinência dos compromissos. Nos zunidos distantes da música. Do lado das raízes, nada se rebanhava na semelhança repetida aos domingos à tarde, na calçada. Tão diferente do lado de lá!
Já conhecia os seus passeios. Em tempos, contara-lhes as pedras, distinguindo as brancas das pretas. Mas havia as cinzentas. Turvas. Turbulentas e indecentemente indecisas. Embriagadas. Dessas, nunca entendera a cor.
Assim o trato. Nada mais piroso que a cansada saudação de “meu querido diário”. Querido? Que denguice peganhenta! A estranheza do pronome imporá limites confortáveis. Detesto palavras sem perfume. Sem voz. Quero lá saber da nobreza, mesmo que duvidosa, do termo. Vossa mercê entenderá a impossibilidade. Destapar o intimismo da minha pele. Aquilatar a minha fome e sede de desvinhos e alegrias a nada conduziria. Fico-me pelos copos de jazz. À noitinha. E penso que você nunca seria eu. Você. Parece-me bem. Frios e distantes, para não resvalarmos em confidências obscenas. Não me conhece. Eu nunca o vi. Essa amizade rolante que apregoa esbarra no logro da proximidade. Cruzámo-nos ao meio dia e doze minutos, lembra-se? Claro que ignorou o susto que me pregou e o grito que você chiou. E já garante uma amizade burlada no olá que me recuso a dizer e que você não para de corvejar? Deixe os bichos em paz que são de Lisboa. Devotos a S. Vicente. Que absurdo. As suas páginas são fossas devoradoras de precipícios humanos. Quer lá saber de lendas! Cale-se. Já conheço esse paleio. Afiançar-me que aferrolhará as minhas palavras a sete chaves é mais uma das suas patranhas. A exuberância, que exibe, advém-lhe de uma chave e de um insignificante cadeado de segunda ordem. Provavelmente, você até um daqueles tipos que passa a vida na praça pública a vangloriar-se da coisa. Risível! Acocorado num banco de jardim decoradamente apurado por evacuações de pombos vagabundos. Você é um funesto cliente de caminhos que eu quero calcorrear. Se eu os escrever, deixo de apontar os atalhos. Prendem-se-me as rédeas. Perco-me nas direcções. Você é um covil que me castra a liberdade da minha narrativa. Eu escrevo para adiar a extinção do meu corpo. Por vezes, não entendo o enfermo impulso que me arrasta para a escrita. Só pode ser culpa sua. Vou denunciá-lo! Por me coagir. E também por assédio. Violação. Tédio infringido pela duplicação dos dias. Das horas. São vinte e uma horas e dez minutos… Como se eu me vendesse à cruel cronologia tempo. É o tempo que me consome, senhor! Não importa o delito. Apenas me proponho mover-lhe uma acção. De pequenas causas, diz você. O problema reside na apresentação das provas. Se me virasse do avesso, conseguiria. Não posso, nem quero, que é coisa íntima. Impugno lavagens de roupa suja na via pública. Não o conheço. Você não me sabe. Não me digo! Você não me conhece, por que lhe devo confiar as dores que me encharcam o corpo? Eu não o conheço, por que devo crer que você não é papel? Essa agora! Que treta! Bola de cristal? Você é doido. Só me faltava mais esta! Cartomantes, videntes, faquires e encantadores de serpentes… Tudo para animar dias ateus, esquisitos e crentes que a chave é a mão. Você não se enxerga, pois não? Evolução, relação, revolução, alimentação, corrosão, coração, perdição… Não!!! Então e as consultas pelo MSN, as adivinhações on-line. Qual bola, qual arte! Cartas, búzios, magias para afeições e felicidade, solução para todos os problemas, desbloqueios de felicidades. Um clique, um utilizador, uma palavra mágica… e a porta desaperta-se na desadivinhação da mente.
Percebeu a razão do meu tratar? Sim, você! Entendeu as desintimidades? Eu escrevo para, da proa da barca que me delimita, contemplar o rio que desagua aqui. Escrevo porque sou louca. Para não me engasgar com palavras que me aparelham a voz. Você é lixo flutuante. Maré negra de incautos desabafos. Desapareça! Recuso-me a ver a loucura das personagens que invento aferrolhadas em armaduras de aço. Você é chave, eu sou alforria. Você… Não se melindre! Você é sociolecto em Cascais. Minhas ricas tias!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]