adornar
o bem das laranjas
Ia eu pela rua abaixo, enrolada nas prioridades da vida, quando reparei numa laranjeira. É que os passeios estão adornados por estas admiráveis árvores. Normalmente, desvio-me delas. Uma laranjeira redondinha. Médio porte. Frondosa e verde. Num dos seus braços suportava, com dificuldade, uma filharada imensa. Todas meninas, porque o limoeiro não andava por ali. Bem nutridas, percebe-se pelo esplendor da sua pele. Com vestidinhos alaranjados. Com um laçarote na cabeça. O Sol, que já aquece a manhã, consolida-lhes a cor. Amadurecem e atiram-se para o chão furiosas com o menosprezo que recebem dos caminhantes.
Uma laranja diz que se lembra das alegres narrativas que se faziam numa laranjeira já adulta. Uma citrus sinensis alta e de folha imortal. Admirada pela força que ainda tinha. Pelo carinho com que ciclicamente se cobria de flores. E como vivia esta fantástica fase da sua vida. Bonita e cheirosa, esperava pacientemente que os frutos atingissem o tamanho de uma bolinha de chumbo. Depois, ria envaidecida por vê-los crescer. A forma, a cor e sabor. Ela conhecia-os melhor que ninguém. Eram sempre doces.
E diz que ouviu falar de uma rapariga. Uma jovem que colhia as laranjas pela manhã. Enfiava-as numa cesta e ia embora. Todos dias eram assim. A moça das laranjas estendia-as às pessoas que passavam. E mais do que uma vendedora de fruta, era a vida que ali estava. Uma pintura dourada pelo Sol e iluminada pela ternura que resplandecia do laranjal. A jovem, insiste a laranja, sustentava a fome ao portão. E vendia-as todas. Até acabar e comunicava que voltava no dia seguinte.
E contava que ouviu ameaças, gritos e correrias. E muito trambolhão de cima do muro. Eram os rapazes. Visitantes clandestinos que tinham como alvo as maravilhosas laranjas que ali existiam. Aquela muralha de tijolos sarapintados de branco era o limite que ousavam desafiar. Afinal, eles conheciam bem aquela doce perdição. Uns preferiam ficar debaixo da laranjeira, eu preferia subir para poder admirar aquela admirável árvore. As laranjas do alto eram mais doces e estavam mais pegadas ao Sol. E as folhas mais verdes renovavam-se por dentro e permitiam que os sonhos ganhassem asas. E saltitassem de ramo em ramo. Às vezes abeiravam-se da raiz. E ali, eu aprendi o cheiro e o sabor da laranja. Da laranjeira que as gerava com bem-querer.
A laranjeira que eu vi não tem histórias para contar. É só uma laranjeira espetada na calçada. Com laranjas avinagradas. Empalidecidas. Que apodrecem ali. Ninguém as vê. Nem têm muro que as guarde. Nem é preciso. Os rapazes enjeitam-nas e vão ao supermercado. Mas, em caso de dúvida, podem voltar. Aprender que a laranja nasce assim. Ainda bem que há laranjeiras na minha rua. Não vão eles pensar que já nascem ensacadas. Todas lustradas e do mesmo tamanho. Por um mecanismo especialmente projectado para o efeito. Automatismos que se ganham, outros que se perdem. E como era bom comer laranjas no laranjal...