À noitinha, gosto de andar. Passadas ansiosas, mornas. Devagar. Dissolvo as horas, percorro a avenida guarnecida com linhas azuis vindas do rio. Atalho o tempo. Desfaço o espaço numa amálgama de aromas. Apago as sombras e os riscos. Gasto passos. E peço-te que não tenhas pressa. Que tornes aos gritos de outrora. Para irmos à feira voar no carrossel. Quero agarrar-me à girafa que teima em erguer-se na incerteza das voltas. Sentar-me no colo do cisne de brancos e quietos cantos. Quero as minhas nas tuas mãos reclamando palavras de algodão-doce. E prosseguimos num passo impaciente até à fonte que sustenta as verdes e bravas piteiras de figos açucarados. Eu gosto de andar. Correr pelo chão resguardado pelos versos dos poetas. Hoje não vou à rua. Não gosto que me obriguem a parar.
Assim o trato. Nada mais piroso que a cansada saudação de “meu querido diário”. Querido? Que denguice peganhenta! A estranheza do pronome imporá limites confortáveis. Detesto palavras sem perfume. Sem voz. Quero lá saber da nobreza, mesmo que duvidosa, do termo. Vossa mercê entenderá a impossibilidade. Destapar o intimismo da minha pele. Aquilatar a minha fome e sede de desvinhos e alegrias a nada conduziria. Fico-me pelos copos de jazz. À noitinha. E penso que você nunca seria eu. Você. Parece-me bem. Frios e distantes, para não resvalarmos em confidências obscenas. Não me conhece. Eu nunca o vi. Essa amizade rolante que apregoa esbarra no logro da proximidade. Cruzámo-nos ao meio dia e doze minutos, lembra-se? Claro que ignorou o susto que me pregou e o grito que você chiou. E já garante uma amizade burlada no olá que me recuso a dizer e que você não para de corvejar? Deixe os bichos em paz que são de Lisboa. Devotos a S. Vicente. Que absurdo. As suas páginas são fossas devoradoras de precipícios humanos. Quer lá saber de lendas! Cale-se. Já conheço esse paleio. Afiançar-me que aferrolhará as minhas palavras a sete chaves é mais uma das suas patranhas. A exuberância, que exibe, advém-lhe de uma chave e de um insignificante cadeado de segunda ordem. Provavelmente, você até um daqueles tipos que passa a vida na praça pública a vangloriar-se da coisa. Risível! Acocorado num banco de jardim decoradamente apurado por evacuações de pombos vagabundos. Você é um funesto cliente de caminhos que eu quero calcorrear. Se eu os escrever, deixo de apontar os atalhos. Prendem-se-me as rédeas. Perco-me nas direcções. Você é um covil que me castra a liberdade da minha narrativa. Eu escrevo para adiar a extinção do meu corpo. Por vezes, não entendo o enfermo impulso que me arrasta para a escrita. Só pode ser culpa sua. Vou denunciá-lo! Por me coagir. E também por assédio. Violação. Tédio infringido pela duplicação dos dias. Das horas. São vinte e uma horas e dez minutos… Como se eu me vendesse à cruel cronologia tempo. É o tempo que me consome, senhor! Não importa o delito. Apenas me proponho mover-lhe uma acção. De pequenas causas, diz você. O problema reside na apresentação das provas. Se me virasse do avesso, conseguiria. Não posso, nem quero, que é coisa íntima. Impugno lavagens de roupa suja na via pública. Não o conheço. Você não me sabe. Não me digo! Você não me conhece, por que lhe devo confiar as dores que me encharcam o corpo? Eu não o conheço, por que devo crer que você não é papel? Essa agora! Que treta! Bola de cristal? Você é doido. Só me faltava mais esta! Cartomantes, videntes, faquires e encantadores de serpentes… Tudo para animar dias ateus, esquisitos e crentes que a chave é a mão. Você não se enxerga, pois não? Evolução, relação, revolução, alimentação, corrosão, coração, perdição… Não!!! Então e as consultas pelo MSN, as adivinhações on-line. Qual bola, qual arte! Cartas, búzios, magias para afeições e felicidade, solução para todos os problemas, desbloqueios de felicidades. Um clique, um utilizador, uma palavra mágica… e a porta desaperta-se na desadivinhação da mente.
Percebeu a razão do meu tratar? Sim, você! Entendeu as desintimidades? Eu escrevo para, da proa da barca que me delimita, contemplar o rio que desagua aqui. Escrevo porque sou louca. Para não me engasgar com palavras que me aparelham a voz. Você é lixo flutuante. Maré negra de incautos desabafos. Desapareça! Recuso-me a ver a loucura das personagens que invento aferrolhadas em armaduras de aço. Você é chave, eu sou alforria. Você… Não se melindre! Você é sociolecto em Cascais. Minhas ricas tias!
Em Maio, a chuva cai verticalmente. Às vezes, por caprichos do vento, titubeia na obliquidade do caminho. Movendo-se na constância do traço…
Em Maio, a chuva murchou o seu sentir. Por isso, não sabe como tombar, receando a queda livre numa qualquer estrada horizontal… na incapacidade de orientar o número de lágrimas na inclinação do telhado…
Num simulacro de geometria, o esquadro risca novas rectas no espaço… A chuva já não sabe se pode chover em Maio…
reprimo as minhas palavras... sem permitir que ninguém as cale... sempre que me silenciam escondo as palavras no avesso das minhas reticências...
E neste sábado que é Abril… celebro as palavras. As que sei, na minoria de um léxico admirável que a língua tem. As que sonho, na grandiosidade de as ter sentido. As que sonhei, mas que não tive, no assíduo mistério de não entender a causa…
Hoje, que é Abril… exalto as palavras livres. Palavras com a barriga atulhada de espontaneidade e muita verdade. Palavras coloridas com verde na esperança e azul no mar… Palavras que rebolam na areia sem medo das poças de água estagnada e do lixo acumulado…
Em Abril, grito as palavras do açaimado poeta…
- Posso falar?
- Não!
… para que nunca mais a resposta se faça numa frase imperativa, tão negativa… e para que me seja permitido pronunciar Abril…
O vento fresco da manhã atravessou desavergonhadamente a janela… guarneceu o meu incauto e desnudado corpo com nítidas asas brancas. Matizou-as com delicados fiozinhos dourados roubados ao Sol… Libertou-me o cabelo das nuvens… A viagem aconteceu moderadamente. Num abraço de brisa fresca, percorremos as ondas do éter no manso fascínio da correria.
O vento, na mais límpida desatenção, largou-me num sopro perpendicular ao céu, numa verticalidade violeta. E o vento rodopiou por cima de toda a gente que encontrou. Rodopiaram as folhas e as nuvens. O Sol e as flores. Pedaços de mar e rios de amantes...
Mesmo que eu pudesse consertar a minha asa despedaçada, não saberia… o meu grito poisaria na sua ponta dorida e as penas vogariam na correnteza do rio…
O vento poisou. Serenou. Lambeu as feridas do meu olhar e pôs-se à janela...
O vento rodopia rápidas reprimendas. Por aqui e por ali. Mais além, acolá também. Divulga-se, voa, galga mares e escala montanhas na mais completa ânsia de transposição de espaços. Dispersa-se nas línguas e nas gentes. Sabe segredos que partilha a cada esquina. O ancião carrega uma mão cheia de sentidos. E pelos dedos, conta um a um… concluindo, invariavelmente, que lhe falta outro. Que a conta está errada!
O tempo inveja-lhe o ofício. Quer ser vento, de manhã, à tarde, até de noite. Por isso, põe-se a acontecer, implacavelmente. O vento graceja da incapacidade. Lembra-lhe a ausência de mãos e acrescenta que não tem sentido o que teima em fazer. Que guarde as asas! Quebradas não chegam ao céu… alerta.
Percebi a dignidade do vento. Se não desperta todos os dias com a mesma intensidade, a erro é do tempo. Ao relógio, extingo a corda… vou deixá-lo a abolorecer. Sempre que o meu relógio não tem tempo, a minha liberdade solta-se com o vento.
Há um ano, criei um blogue... dizia eu que para "armazenar" coisas... um arquivo...Há um ano, mostrei o blogue ... em segredo e corava pela ousadia...Hoje, para ti, vai um beijoabraçado, GMV...
Hoje, para todos os que aqui têm chegado, vai a minha gratidão...Hoje, reescrevo o mesmo post... com mais emoção nas palavras e muito embargo na voz. No silêncio de mim ...
Choupana onde se ri vale mais que palácio onde se chora...
Sou um canário e o meu nome é Mário. Belo, amarelo, dois anos de idade. A minha melhor qualidade? Cantor, naturalmente! Vim de longe, de muito longe... Viagens de família, linhagens a cumprir, rituais repetidos. Das Ilhas Canárias, conflito adiado na História assinalado... Miraculosa plumagem! De amarelo pintado, a cantar desenhado... ou branco ou mesclado, mas salve-se a tradição que me confunde com o Sol. Sempre fui fiel às tradições. Do Natal, do Mar, do Falar, do Cantar a dor no Fado sofrida. E então, se a alpista é miragem de ave canora engaiolada? Gaiola? Belo e encarcerado! Gaiola? Cantor amordaçado!Tristes aqueles que não entendem a liberdade da gente! Destino fadado - fada má certamente - para mim. Assim: pássaro , belo, prisioneiro, aedo , trovador... Tanta falta de rigor. As asas por voar, as penas - que não são pequenas - a crescer, o canto a esmorecer... Triste sorte a minha! Determinada e fechada junto à janela da cozinha. Espaçosa, arejada, escura nas madeiras. Tudo demarcado e marcado pelo gosto. Castanha , florida, ensolarada - ai, Sol que não me reconheces - comestível, perfumada, cozinha... Ao fundo a janela. Grande, envidraçada, lindas cortinas de renda ... brancas e com muitos folhos. Cobres aos molhos. No fogão e no balcão. Reluzentes - tão areados, coitados! Ampla, ventilada, dourada, uma enorme assoalhada, eis a minha gaiola. Suspensa num suporte também dourado. Requinte engalanado, maldade abismal de quem crê fazer-me bem quando eu me sinto tão mal. Liberdade paradoxal, perplexidade num pássaro alado sem asas para voar... Poleiros a reluzir, baloiço - que luxo - de embalar e sonhar com as asas que não tenho, porém invento. Passatempo para ludibriar o tempo... Tudo perfeito. A cozinha, a gaiola e eu que caibo nela, à janela. O que não entendo mesmo é se me encontro preso - definitivamente ou se me fizeram refém não sei de quem. São, evidentemente, situações diferentes de pronunciar cativeiro. Preferiria saber a ter que adivinhar. Só que não sei qual escolheria. Que importa quando não me permitem a escolha e se não tenho asas para voar? Conformo-me e pronto! Sou pássaro amputado em arames castrado! Enclausurado? Paciência, rendo-me à evidência de príncipe encantado no palácio algemado. Inocente mentira de quem só pensa no caminho para lá... Íngreme, penoso ? Sei lá, se a possibilidade de experimentar não há? Somente uma vez... Talvez não vá gostar e possa voltar... Eu volto, prometo! Insensíveis, cegos na ganância de me prenderem ali... a cantar.... quando eu estou a chorar lágrimas reprimidas, dores sentidas, liberdade aprazada sem dia marcado. Raptado ? Alternativa ao nada que é já tudo, tanto na libertação almejada. Refém sem data no tempo que não passa, mas desgasta. Bastam-me as culpas que recuso, o perdão que não peço, a alma que não vendo. Antes pássaro amarelo num livro decalcado. Resta-me a janela que é a ponte entre o que sou e o que desejo e não vejo, apenas sonho! Lá fora o vento agride o bom tempo que não há. A chuva repete-se na ladainha costumeira. Ping ... ping ... gota a gota. Um relâmpago de quando em vez ilumina a noite escura que não me permite sonhar... Um trovão que de imediato me vem acordar. Vejo ninhos e árvores e sei segredos que não desvendo porque é castigo estar aqui. Imagino-me pássaro a voar, a voar e apetece-me cantar a minha loucura... D. Quixote, pois então. Mas não, ouvi um trovão. Que vozeirão a vociferar a razão de eu estar aqui. Ainda bem que não o percebi. Cumpre-se a Torre de Babel. Aquilo não são modos de falar com ninguém. Apenas me assustei, contudo não gritei, juro! Apenas acordei... A minha vida é um temor permanente. Receio a fuga que idealizo e não concretizo. Temo a prisão que me nega a evasão que desejo. Estremeço quando a porta se fecha a adiar, a adiar... Arrepio-me com a possibilidade de a deixarem escancarada... Fecham-na sempre. Vida madrasta . A Gata Borralheira foi tão feliz! Oiço o vento a entoar melodias de embalar, cantigas de amigo... Parto com ele à conquista do mundo que me foge, grito a fantasia que há em mim e canto a magia da meia-noite. A fada perdeu a varinha de condão! Não tem perdão. Não! Não! Lá isso é que não... Da janela eu tenho o mar. Vejo pontes e barcos e homens, muitos homens. Oiço vozes escondidas e perdidas no movimento contínuo das marés. Encontro sonhos adiados nos olhos dos mareantes que se fundam no cais. Sem poesia, sem paixão, com adamastores na imaginação. Sucumbem ao peso da viagem que nem começam. Percebo ondas que vêm e vão magoadas de não continuar em movimentos inquietantes, irrequietos, ondulantes, sedutores, mas tão redutores. Não deslumbram as varinas atrevidas , bamboleantes e cantantes. Livre circulação, não! Marionetas, controladas à distância pelo tempo a dizer que não. Os homens descontroladas não entendem que são prisioneiros da vida, amarrados aos sonhos que não levam para o mar. Livres e tão presos, os pobres... Não sabem que o mar é decepção de quem quer partir e fica ali. É a fantasia, a razão, o espectáculo , deixa de quem só sabe ficar... E eu queria tanto ter um barco, galgar distâncias, cumprir a História: navegar, navegar. Ir para além da Taprobana. Em desejos e mitos concretizados, mais do que poderia a dor das minhas penas e, entre sonhos meus, desenhar a minha saída para o mar, Utopia decrépita em gaiola doirada. Barco fundeado ao largo, lágrimas reprimidas na viagem por acontecer. Miserável, para que queres asas se não sabes voar? No outro lado há frio e vento e chuva e um calafrio percorre-me o corpo ... sinto-o ... inunda-me a alma. Vem trovão! Acorda-me... Lá fora, as árvores, trémulas e amedrontadas, agitam-se. Quem diria o medo delas! Estouvadas que não entendem que é somente o vento a correr por ali. Cavaleiro andante a cavalgar , a saber, a conhecer. Invejo o vento que é livre para voar e pensar. Amo o vento que não se deixa amordaçar. Há vendaval de novas no jornal ! É o vento a sustentar o pensamento. Um rapazito corre. Ele quer percorrer o tempo, que se lhe escapa, para o domar. Ignora que a ventania não se dobra à vontade da gente. Pressinto-o triste. Tão triste...A sorte que nós temos ! Tu petiz infeliz correndo pela rua, apesar do vento... Eu canário perdulário em gaiola doirada... cara envergonhada a espreitar à janela. Olhos sequiosos de ver, boca faminta de não ter,, mãos calejadas de tanto pedir, roupa gasta a desistir... Tens, meu amigo. a liberdade de fugir! Eu é que não! Que vês? Não te iludas. Aparência ilustrada, ave desasada ... Espera! Fica mais um pouco Estou rouco de cantar para ti... Eu canto! Não está mais ali. Encontro desarrumado, mas tão perfumado. Foi uma rosa que eu vi: bela, pequenina, efémera. Eu queria contar-te um segredo. Nem o meu degredo repetido, nem arvoredo escondido. Tão somente um segredo. Pequenino! Que fosse nosso, meu e teu. Olhos nos olhos bastava para nos entendermos... tu não olhaste para mim. Divina cumplicidade na amizade a haver. Um segredo... Amanhã é Natal! Narcotizante inebriante de tanta gente, simplesmente porque é Natal. Amarguradas e desajustadas as pessoas circulam descrentes das luzes reluzentes. Formigueiro domingueiro em dia de semana. Tão apressadas que não dão por nada. Nem reparam que estás ali e eu aqui. Compram, compram sem razão. Predestinadas... coitadas! É Natal... elas estão distraídas, tu não. Cumprem o calendário, tu inventas o teu fadário. Elas têm, tu és, eu estou. Dá, não compres que corrompes o amor que contigo nasceu. Amanhã é Natal... Porquê se amanhã é segunda-feira? Vamos fazer Natal? Para quê se não aprendeste a brincar. Inutilidade tamanha! Um brinquedo de infância para quem não é um criança... e eu nem vi o mar. Anacronia com sentido proibido... Vem! Eu ensino-te a brincar e a rir e a chorar e a sonhar e a amar e a perdoar e a cantar... Tudo, excepto comprar na véspera de amar. Um dia será Natal. Numa fuga planeada. Definitivamente! Aqui, aí, sempre!
- Bom dia, Mário. Dormiste bem?
-Tão lindo o nosso canário...
- A gaiola está bem ali?
- Cuidado com a porta!
- Fecha a janela, não vá ele fugir...
Janela trancada. Cortinas cerradas E eu só oiço o mar...
Naquele tempo, o céu envergonhava-se orgulhosamente só. Por isso, da perenidade das nuvens escorriam coibidas lágrimas de mínguas.
Pelas estradas do reino, homens, mulheres e crianças erravam na busca do Sol. Poeirentas encruzilhadas. Escassos, os que confessaram habilidade para achar o caminho. Tantos os que distinguiam os atalhos. No entanto, desconheciam os trilhos… Tantos que bradavam silêncios indignados.
Pelas estradas do reino, os soldados imperiais circulavam de noite. Sem olhar os astros. Nas mãos, conduziam medrosas lanternas que camuflavam, na escuridão, uma luz ainda mais assombrada.
Cambaleando de esperança, um menino anunciava:
- Hoje faço anos. Sete!
- Tantos, menino?
- Sim… mais anos, mais a escola, mais a primeira comunhão, mais a primeira fotografia…
- Hum!
- Já sou grande!
- Pois és. E mais?
- Mais não tenho, mas tenho menos.
- Hum?
- Estreei uns sapatos, feitinhos só para mim…
- E isso é menos ou é mais?
- Menos!
- Hum??
E os pés do menino choraram prantos doídos porque não estavam habituados a viver encarcerados. O menino soluçou com eles.
Pelas estradas daquele reino, o menino vagueava com os pés algemados. Com os joelhos segredava uma oração. Depois, juntava as mãos na fé de que continuar era melhor do que ficar a rezar. E já cansado, pedia a bênção e ia-se deitar. Ao alvorecer, hasteou os olhos e desfraldou uma canção. Ao mesmo tempo que os pés cresciam nos sapatos.
Hoje, o menino pé descalço celebra o dedo-topada que um dia foi embrulho num sapato.
Sempre que passarinho, oiço pardais, tentilhões, poupas e muitos piscos. Pássaros. Muitos pássaros no olival. Também no medronhal. E lá em baixo, junto ao sobreiro inclinado pela vida. Foi o vento que o encolheu. Passarinhar sabe a mistério. Tem segredos e enredos de criança. Uma correria na direcção do ouro. Do paraíso perdido. Por isso, passarinhar é demanda. Trajecto de vida. Atalhos feitos e desfeitos no limite da saudade.
Sempre que passarinho, descubro o charco. Largo e arredondado. Com muito junco e pedaços de areia enxovalhada pela lama. Com o junco, fazia cadeiras. Muito pequeninas. Para a boneca. Na areia, os pássaros matavam a sede. Bebiam descansos de dias a passarinhar. Sem saber andar. Antes saltitar. A passarada caía no logro. Na rede ágil que puxava, camuflada numa cabana fraudulenta e engendrada com canas e matos roubados às margens do pântano. Enredavam-se no visco peganhento e nojento que lhes capturava os pés e os proibia de passarinhar. Armadilhas manhosas e dolosas, desleais, mas inculpadas. Era a menina a passarinhar. Uma menina que não sabia que Deus ensinou os pássaros a voar. Por isso, lhes deu asas mescladas de galhardia, audácia e muita gentileza. Que eles exibem sempre que voluteiam no ar. E ensinou-os a cantar. Cada um com um repertório singular. E os pássaros exibem um sublime refinamento vocal. A voz, o volume e a vibração garantem a sua sobrevivência. E encantam as manhãs. Os pássaros passarinham pelo céu, porque gostam de vadiar. E, do alto, poder pipilar que para voar não é precisa a chave da gaiola. Na infância, aprendi a passarinhar. Mas já me esqueci.
A disposição para passarinhar ficou. A minha mãe, sempre que branqueava o chão da cozinha, expulsava-me dali. Zangava-se com estorvos à limpeza. E não compreendia a razão do meu passarinhar. E eu não gostava nada que ela me acusasse de passarinhar. O canário, na gaiola, abstraía-se da polémica e eu há muito que não acorrentava pássaros. Eles é que me seduziam. Nem queria! Foi coisa de brincar. Se ela não aprovava que eu andasse de um lado para o outro a esborratar-lhe os mosaicos, deveria dizê-lo. Sem invocar os passarinhos.
Tenho o direito a passarinhar. Quando passarinho, abre-se o horizonte sem arame farpado. Ali, onde pára a liberdade de ver o que quero olhar. De fitar a luz que me circunda e agasalhar-me no ninho da minha inculpabilidade estouvada. Vou, porque amanhã é sábado, passarinhar até à Dona Perpétua por causa do arroz-doce. Com sabor a canela e polvilhado com gargalhadas a passarinhar por aí.
Aqui sou seu. Sem correntes, sem algemas, sem peias que lá fora me impõem. Aqui revelo-me como sou. Aqui dispo-me de circunstâncias conjunturais. Aqui sou apenas refém de mim. Aqui posso colorir a liberdade com as cores que eu sei de cor... Aqui digo sem medo de represálias. Aqui digo verdades. Aqui digo mentiras. Aqui finjo ambas.
Aqui minto descaradamente. Tudo é fictício, tudo é teatro. Na verdade, todos enganamos, todos mentimos. Máscaras e mais máscaras que se revezam entre a comédia e a tragédia. Nada as impede de percorrer ruas, cidades, países, o mundo. Jardins proibidos. Paraísos inventados. Vidas fingidas. Aqui, há que simular, há que aparentar. Tudo é hostil, tudo me irrita, tudo me afecta. Tudo amo. Tudo se constrói num imenso deserto mental do qual nem sempre soube, ou não quero, sair.
Aqui mostro-me transparente. Exponho a minha nudez aos vosso olhos. Aqui me oculto na opacidade do meu corpo. Aqui exibo a minha pele translúcida. Aqui sou como sou. Ficção que a vida escreveu. Sou Menina e Moça que já fui; errei por Cidades e as Serras; sou Gente Singular. Sou Húmus, sou Clepsidra, sou Tanta Gente, Mariana... Perdi-me no Labirinto da Saudade e reencontrei-me no Vale da Paixão. Chorei quando O Principezinho me fez sobra, sorri ao ver a minha morte julgada na Barca do Inferno. Colhi A Maior Flor do Mundo, fiquei estupefacta perante a Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho. Irmano-me na sorte de Os Bichos e até sei Um Segredo sobre passarinhos... E porque a Demanda se faz desejo de cor nunca vista, eu não Sobrei da História dos meus Pais, seguramente. Aqui posso partir à descoberta do Conto da Ilha Desconhecida saindo pela porta das decisões. Ou aguardar calmamente à porta dos obséquios. Aqui posso Falar Verdade a Mentir ...
Aqui, nem sempre sou eu! Aqui eu posso não ser eu, sendo eu! Eu cumpro-me no paradoxo de ser e não ser. Eu sou porque tu existes... Eu sou produto da evolução da minha espécie e espero que a selecção natural actue sobre mim e melhore a minha adaptação a um meio que fere e que dói.
Ignoro de quem descendo. Rezo para que não tenha em mim um réptil derrotado por um qualquer dinossauro.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]