Por vezes, tantas são as vezes, apetece-me ir para trás. Não que queira, não que corra. Somente deslizo. É o tempo que suplica um beijo à tardinha. O vento que impõe a frescura do abraço. E eu não vejo a simplicidade do caminho. É o mel que escorre pela areia. São os corpos encharcados de azul. São as algas que se enredam na rima das marés. Somos nós. Que nos poupamos no excesso das dunas. É a areia que se desfaz. É o sol que acende as nossas tréguas. E eu não antecipo a outra margem. É o meu tempo que cai desamparado nas sombras do carreiro. É o teu sorriso molhado que escorrega pela serra.
Às vezes, o rio concede-me as tuas mãos. Tantos acenos. Mais abraços. Mil afetos. E as gotas salgadas sorriem na aflição dos gritos dos pinheiros.
Depois, agarro o céu. Destapo o dia. E fica a distância que há entre mim e os restos dos botes que morrem na praia. As nuvens içam as cores rasgadas que sobram da tarde e a margem do meu olhar. E tu dizes que tens procurado.
Há momentos em que perco o olhar. E não faço nada. Apenas o rio faz o que pode.
Quando vejo a minha sombra, lembro-me de mim. Ela alonga-me e olha-me de pé, na verticalidade do meu corpo. Na verdade, ______________________ não necessito de a ver para me sentir...
No vulto que me reproduz, vislumbro a escuridão de cores que pinta a minha vida nos tons que se quis.Na minha sombra, quero olhar para mim, sem que tenha de me mostrar.
Esquece-me, mas não ignores que ainda me alimento. E que, no Verão, os meus lábios murcham com a sede do deserto. Não morrerei na escuridão, apenas no dia em que os meus olhos não virem os teus... quando vítreos e pesarosos se estatelarem no chão.
Deitou-se, pouco depois do jantar, sem que o sono tivesse chegado. Nem a menor advertência. As pálpebras não tiritavam ao ritmo de reflexos sonolentos e as suas grandíssimas pestanas negras calavam enleios enamorados. Arrumou-se na horizontal no cumprimento de disposições paternas.
A noite aconteceu muito cedo. É sempre assim no Inverno. Sobre a mesa-de-cabeceira, o candeeiro a petróleo atrevia-se a ser luz. A torcida subia e descia disposta a cooperar. A chaminé enfarruscada queixava-se de não ter sido limpa com o jornal, mesmo assim cumpria a sua condição. Devagarinho, emanava um bruxuleio amarelo-turvado. O quarto era pequeno porque a casa era pequena. A cama era mais pequena ainda. O frio de Dezembro corria friíssimo de parede a parede. Do chão ao tecto. E ele, por tanto tremer, refugiou-se no calor de dois cobertores às riscas. Largas, castanhas, amarelas, verdes e vermelhas. Em lã churra de ovelha. Pesadas e quentes como o Sol que, na sua cíclica obediência, se deitava mais cedo. Mas era aquela a luz que lhe permitia penetrar na pele das coisas. Por isso, descia o pavio e extinguia a chama.
E via a noite de estrelas cintilantes. Meninas e franzinas abraçadas à escuridão. Adivinhava-lhe intenções. Pedia-lhes mais esplendor. Exigia-lhes que denegrissem o cristal. Que não plagiassem o candeeiro que bruxuleava sempre antes de morrer. De entre todas, uma tinha mais esplendor. Subiu até ela e foi ver o Natal. Que não cabia numa casa tão pequena. E empoleirado na Cygni aproximou-se do Sol. Viajaram os dois, com o céu na ponta dos dedos. Ali! Acolá! Não, mais para aqui… Vamos! E foram… Descobriu brilhos ilusórios. Delírios refulgentes de luzinhas que tremeluziam na cidade. Correrias desvairadas alindadas com laços de metal. Encontrou gestos repetidos em juramentos de fé cumpridos no dia. Maltratados antes. Crucificados depois. Destapou hipocrisias que bruxuleavam rumores resolvidos a cumprir a tradição. Estranhou o brilho excessivo de luzeiros a iluminar. E boquiaberto pensava que tinha aterrado num céu a brincar. Mas depressa percebeu que se tinha enganado. Que no céu não há publicidade, nem centros comerciais.
E por tanto ver, acabou por adormecer. E sonhou que as estrelas do céu é que são autênticas. Bruxulear reside na circunstância de libertarem energia na tranquilidade do seu ser. Mas lamentou a cobiça do Sol que, por inveja, lhes perturba o brilho. Durante o dia, porque a noite há outro brilhar.
Enquanto dormia, segredava à estrelinha, que espreitava à janela, que era um menino afortunado. Tinha um candeeiro a petróleo humilde no seu cintilar. O pai e a mãe dormiam tranquilamente no quarto muito pequenino. De manhã, tomariam o pequeno-almoço juntos. Depois, brincaria com o papagaio de papel que o pai lhe fizera com um fio do tamanho dali até às estrelas.
Gosto de dormir até acordar. Sem intervalo. Adormecer as horas cansadas. E sonhar que não me vou levantar. É só um sonho. Não é crime, é? Às vezes, já na cama, adormeço com a noite. E ela conta-me histórias de embalar. São cumplicidades que embrulham sonos e sonhos. Ela fala-me de penumbras e escuridões. Eu garanto-lhe que há luz. Ela garante que o Sol é amarelo, mas nunca o viu. Leva as mãos à cabeça e chora.
O dia acordou depois de a noite ter adormecido. Bem cedo! Espreguiçou-se, bocejou e disse qualquer coisa que não compreendi. Palavras arrufadas de quem lava os pés na água que corre fria. Exclamações amarelas de quem acorda com o gorjear dos pardais. E com o alvoroço do galo na capoeira. E com os grilos que cantam o alvorecer: gri‑gri...eu não morri... eu não morri... Estava frio e o Sol despertou também. Tomou um duche rápido. Vestiu-se. Tomou o pequeno-almoço. Pôs-se à janela determinado na espera. A Lua haveria de chegar. E talvez, seranemente, sussurar sem a olhar:
- Desculpa! Vai-te deitar. Já é tarde.
E o Sol deitar-se-á com um enorme sorriso nos lábios. Sem lhe tocar. Adivinha-lhe o rosto. Define-lhe o gesto. Chorosa, a Lua, confessa que assim não é feliz.
E eu, que não interfiro em guerras conjugais, espreguiço-me e grito ao vento queGosto tanto de acordar todas as manhãs!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]