Gosto de ouvir rádio. Andar por lá, adormecer no bulício das vozes, enrolar-me na cadência da música e desadormecer ao colo da canção seguinte. E dou por mim a pensar naquela canção que ouvia sem me atrever a contar as vezes. Que não ousava contar a ninguém, com medo que me furtassem o instante. O tempo passou e agora não escuto as mesmas canções. Mergulho nas vozes, gosto das músicas e enrolo-me exatamente com a mesma desordem com que antes me embalava.
Passa uma canção que escutava com o volume incendiado… quase não a reconheço. Desejo que acabe… E dou por mim a pensar a razão do meu sentir. A canção permanece inalterável…
Não fui eu que mudei… mas é impossível ouvir a mesma canção sem lhe mudar o sabor. Como o beijo que trocámos à tardinha… Como a cor deste mar de ritmos cadenciados… Como o bater inquieto das nossas bocas que numa tarde se calaram com uma vontade doida de chorar.
Agora que já nos conhecemos melhor, vou confidenciar uma coisa. Tenho para mim, provavelmente nem é verdade, que tenho bom gosto. Apenas e só porque gosto e pronto. Nem creio que seja indispensável mais nada. Nunca aceitei desculpas e narrativas fantásticas para justificar os gostos. A peculiaridade de cada opção é um traço de cada um de nós. São estes riscos que nos estruturam e assinalam, no quadro da vida, a individualidade humana. Veja-se o caso das ovelhas. Até balem com a mesma cadência. A uma só voz. Sou pela diferença e ponto final. Recuso gregarismos ovinos e outros que tais. Carneiro não conta, que nasci em Abril.
Agora que já nos conhecemos melhor, vou dizer-vos que tenho gostos e desgostos. Plurais e muito individuais. Outros não. Tão banais que toda a gente tem. Nem me importo, nem vou suicidar-me no cruzamento do caminho para onde convergem sabores e paladares tão iguais. Ter gosto é admirável. E quando o podemos oferecer como uma oração à liberdade, ainda melhor. Mesmo muito ecléticos. Tão contraditórios que não entendíveis. Os meus são assim. Há outros que não. Sou pela fidelização a crenças universais. E muito pessoais.
Agora que já nos conhecemos melhor, vou assumir que é desacertado escarnecer de predilecções particulares. É falta de educação e revela incivilidade. Eu sei que ter bom gosto é melhor que mau gosto, mas mau gosto é melhor que gosto nenhum. Concordemos! Apesar de ser certo que nem todos o podem ter. Só que isso não vem a propósito. Nem sei por que me lembrei. A padronização do gosto é castradora. Eis uma excelente razão para ter gosto. O meu. O que eu não gosto mesmo é do bom gosto. Nem de quem tem bom gosto, convencido que o adjectivo é superior a outro em boa qualidade. Eu falei de qualidade, falei?
Agora que já nos conhecemos melhor, vou declarar que gosto exponencialmente de música. De toda não, só da que gosto. Com o meu gosto muito eclético. Naturalmente condenado à falta de originalidade e de coesão. Gosto de vozes que me acariciem o coração. De músicas que aferrolhem os meus olhos e me conduzam por aí. De textos que me acicatam o corpo. Sem qualquer explicação ou fundamentação musical.
Agora que já nos conhecemos melhor, vou anunciar que gosto demasiado de música em francês. Pela semelhança de emoções, pela sonoridade da língua, apesar do accent e do ritmo. No entanto, sempre que a ouço e preciso dela todos os dias, a melancolia embaça a minha voz. Exactamente como quando oiço o luso fado… e concluo que a responsabilidade é dos romanos que reconciliaram as línguas. E não satisfeitos com a conquista, as emoções e os sentimentos também.
Agora que já nos conhecemos, não me digam que é pirosice e muito foleiro... E até gosto do bouledogue francês. Eventualmete, um dos cães mais feios ao cimo da terra. Tem meiguice no olhar e ladra como os outros. Gosto do ritmo e da harmoniosa cadência da linguagem. Caniche não, pela sofisticação.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]