Sei de um saquinho. Linhas combinadas em movimentos ritmados e decididos. Calmos à tarde. Ao serão é que não. Novelos de sonhos que se desenlaçavam sorrindo. Enredos de artista desenhados por uma agulha adequada. E naquele dedilhar forjavam-se paisagens abertas. Futuras e presentes. Passados perfeitos e imperfeitos num templo de profetas. Condicionais muito hipotéticos. E tantos conjuntivos acarinhados! Sei de um saquinho de renda branca que antes de ser saco era apenas novelos de linha número doze. Agora geme na trama que é.Hoje, quando digo saco, vejo uma paisagem que se amplia sem começo, nem fim. Sobre um fundo branco, avisto uma multidão compacta de palavras. Amontoam-se numa ordem esbanjada, hesitando entre a subordinação a regras impostas e o bulício que contêm. Quase todas me são estranhas. Às minhas, estendo a mão. Abraço-as com gratidão e elas emaranham-se em mim.
Sei de um saquinho de renda branca tecida com dedos de deusaem laços de seda. Apinhado de amálgamas ponteadas de carinho. Com aglutinações de ternura e justaposições de amor-perfeito. Sem abreviaturas apertadas de nomes que a língua tem. Juncado por vocábulos animados numa parassíntese celestial. Antes e depois, infelizmente.E de todas as palavras primitivasque o saco encerra, são as mãos que teceram o saquinho de renda branca que eu peço. Mas eu sou acréscimo simultâneo de prefixos e sufixos. Sou recorte na união de dois radicais. Sou composição justaposta no guarda-chuva que na segunda-feira me abrigou da perturbação. Sou sigla num saco que desmaia nas letras que pronuncia. Sou acrónimo atormentado por arcaísmos determinados.
Sei de um saquinho de renda branca que se fecha sempre que uma justaposição de ideias imagina fugir. Arroz-doce… arroz-doce… arroz-doce… na mais perfeita composição. Com a mais primitiva canela.Sei de um saquinho de renda branca que esconde paisagensda floresta dos medos.
A sociedade actual tem receio de si própria. Está prenhe de medos. Mas prepara-nos para os superar. Também nos defende e protege. No entanto treme. Porque o medo não é racional. Que seja por isso. Ou pelas armadilhas que ela própria instala. Com a vida que também é batoteira. Certas que o pânico é bem pior. O medo sobra-me…
O medo enregela a razão. Diz-lhe que não e o caricato sobrevém. Como se o susto não fosse temor. Há medos que se compreendem. Outros nem por isso. Não se entendem. E os que metem muito medo. A morte é um processo mais que natural e universal. Gera medos de várias cores. Não por partir, antes por não ficar. Não por abalar só, apenas porque se deixam pessoas que se estimam. Umas choram. Pensam que também irão e têm medo. Outras não. Recear uma formiga é risível. Porém real. O bicho trabalha que se farta e nunca pára quieto. Carreiro, carreirinho onde vais tão de mansinho? Temem que a comida falte e que não sejam notícia na televisão. Um tremor de terra assusta. Acordei comum barulho tremendo vindo do lado oposto ao meu quarto. A sala era a divisão da casa onde a minha mãe tinha um guarda-loiça. Com copos e chávenas. Também uma terrina e o resto. Duas dúzias de pratos. Ou mais. E canecas que a minha avó trazia, sempre que nos visitava. Assim como se fossem vidros gigantes a baterem uns nos outros. Depois, vieram os gritos, portas a abrirem-se. E num instante a rua celebrava um nível de assistência pouco usual. Um prime time da sismologia. Só percebemos depois. Primeiro assustámo-nos. A seguir veio o medo. Simultaneamente o pânico. Desta vez a coisa foi rápida. As consequências nem por isso.
O medo é assim, não se explica. Nem se diz com palavras escolhidas. Uma para cada um. Não chegam. O catálogo dos medos tem páginas infinitas. Mas há palavras que metem medo. Paz. Chama a guerra. Destroços. Por causa da maré negra. Dos acidentes rodoviários. Apartamentos. Há as barracas. E os vãos de escada. Amor. Carrega a separação. O divórcio de afectos. A perda de amados. A palavra vida que descaradamente apregoa a morte. Inverno porque apaga o Verão. Mar pois come os rios. Às vezes os barcos. E não tem cabelos para eu me agarrar. E trepar. Sombra é uma palavra ruim. Vultos e restos. São formas sem jeito. Descompostas. Negras. Não se desnudam. E à noite, ganham rostos hediondos.
Por isso, gosto das formas que a luz me permite ver. Nem que seja em contra-luz. Com muitos reflexos. E desvios esplêndidos. O belo é palavra má. O feio existe. O imperfeito. Mesmo que irracional. Mas ecos da juventude e da velhice fotografam-se na minha memória. As fotografias não se questionam. Fixam instantes verdadeiros.
E hoje tive medo. Por causa de uma coisa que eu vi. Um vulto esbranquiçado que sobreveio ali. E Pã ensina os outros deuses a tocar. Eles é que não prestam atenção...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]