Sinto saudades de uma época que que já não tenho. De vez em quando, lembro-me. Sem saber se são memórias que trepam pelo tempo. Ou ofertas de episódios que se perderam na efemeridade dos dias. Se são primaveris momentos de saudade. Ou meras circunstâncias que descem em meu auxílio. Não sei. Mas juro que os tive. Que os comi com o mesmo deleite com que me enrolo em mim. Garanto que foram meus. Não me poderia lembrar do que não tive, penso num franco e generoso sorriso que chega até lá.
Naquele tempo, sobravam meias rotas, passajadas e gastas. Outras, escorriam malhas. Danos irreparáveis. Era com as meias que sobravam que a minha mãe me enchia de alegres brincadeiras. Das suas mãos, saíam, normalmente ao serão, bonecas maravilhosas. Depois vestia-as. Penteava-as e eu brincava com elas num orgulho desmedido. As bonecas da minha infância foram feitas de trapos. Tiras de amor e linhas de ternura.
Um dia, não me lembro exatamente qual, surgiu lá em casa uma boneca nova. Orgulhosa. Com um olhar distinto. Lembro-me do exagero da sua boca escarlate. Recordo a inquietação com que recebi o presente. Corri para a rua, gritei, saltei. Tenho uma vaga ideia dessas hipérboles infantis. Passado o instante, isolei-me com o meu recente brinquedo, uma boneca que não era de trapos.
Debaixo da figueira, aquela que generosamente dava figos moscatéis, defini o território. Uma casa desenhada na terra. O quarto e a cama. A boneca adormeceu. E eu olhava-o com um profundo instinto maternal. Embalava-a e cantava para ela cantigas de adormecer. Não tenho a noção do tempo que estive assim. Nem sequer sei se lhe doei um nome. Tenho pena de não a poder tratar pelo nome… Havia a boca! Tão vermelha! Era a boca que dificultava a nossa relação. Dava-lhe um ar de boneca crescida que não me agradava.
Subitamente, começou a chover. Uma chuva que tombava numa verticalidade severa e assustadora. Peguei nela ao colo e corri para casa. Foi um trajeto de ziguezagues que fiz em pouco mais de cinco minutos. Chovia intensamente. Pancadas torrenciais que provocavam medos na minha cabeça e na dela. E eu corria. Entrei em casa escorrendo gotas de desalento. Gotas de brincadeiras atrapalhadas. E lamentei a sorte.
A boneca estava desfeita. As suas feições tinham-se alterado sem que eu percebesse. Recordo um buraco enorme na face. E chorei a desgraça. Ela estava doente, moribunda, acabada, semimorta.
Não tiveste cuidado. As bonecas de papelão não podem apanhar chuva. Fiquei agastada, humilhada com a informação. E eu sabia lá que o raio da boneca era de papelão? Papel ou qualquer material do mesmo género? E o banho? Eu já lhe tinha dito que tomaria banho comigo e ela concordara…
É por tudo isto que, ainda hoje, prefiro as bonecas de trapos que a minha mãe fazia para mim. Conhecia-as bem. Nunca me passou pela cabeça dar-lhes banho, afianço. É por causa delas que tenho saudades das mãos da minha mãe. Mais resistentes às tempestades. E do jeito que ela tinha para lhes compor o olhar...
Achei um búzio que andava a chorar. E o búzio de tanto chorar, logo se pôs a cantar. E por tanto cantarolar, começou a consentir. Um canto que vinha do longe. Que vinha do mar.
Peguei no búzio que parara de chorar. E que agora estava a olhar. E de tanto olhar, afogou o rumor que remava no mar.
Embalei o búzio deserto. Que só queria cantar. Pedi-lhe que se ocultasse para o poder adivinhar. Contei-lhe uma história só para o calar. Que dali, eu via o mar. Que dali, percebia o silêncio dos sulcos das ondas. E que começara a desconfiar se flutuariam búzios no mar… Que dali, eu cobiçava o mar e o melhor era correr e até mergulhar. Acrescentei, apenas para que se deixasse, que dali, eu sonhava o mar. Que me deslumbrava com as paisagens a flutuar… para cá, para lá… e que via rostos ateados nas águas a errar… Persisti na história. Que dali, eu afundava o mar.
E o búzio que andava a chorar. Que já estava a cantar. E que se calou para a ouvir uma história de marear, logo me falou da inutilidade da proa. Tornei a recordar-lhe que na cama onde me deitava, havia sonhos a que não assistira. Que não entendia a razão de tamanha proibição.
E o búzio que eu encontrei a chorar. Que já só me estava a olhar. Acariciou-me a sombra que me velava rosto. Correu pelo calor da areia. Tropeçou. Ficou. Então, amargas lágrimas aconteceram no mar… Fez-me um último pedido. Implorou que ao meu ouvido chegasse o azul do rio que era aquele. Que não chorasse no mar.
E o búzio que eu encontrei a chorar. O búzio. O búzio naufragou. Sem me explicar por que tinha dentro a voz do mar… noites de verão e muitas conchas com vozes. Que nas minhas mãos se estendem na consonância rosada da sua pele .
Eu sei… Fico por aqui. Nisto. No silêncio mudo do vento com paladar a maresia. Aportei. Amei. Lambendo os frutos do mar. Lancei o búzio. Atirei os búzios. Na analepse das grandes marés. Na ignorância de prolepses escusadas… a escutar o futuro.
há instantes que são ventos na irrepetibilidade do sopro
Quando olho pela janela, vejo flores. E muitos barcos... Às vezes, perco-me na imensidão do espaço, no comprimento do tempo... e penso. Penso nas paisagens que tive e sinto saudade. A minha cabeça enche-se de nostalgia... porque são momentos irrepetíveis. Com acordes melodiosos, a minha memória seduz esse olhar...
O Monte. Sempre foi assim que os meus pais me falavam daquela fila de casas brancas e azuis. Do alto do enorme monte de areia, espreitavam o rio, espraiavam-se ao sol, iam à pesca de robalos, xarrocos e chocos... Um acto de amor. Por vezes, já fartas e cansadas, ficavam pelo areal, deliciavam-se com os caranguejos, berbigões, canivetes e ostras. Era uma gente tranquila, com uma vida tranquila... Do outro lado, eram as moitas, os matos abastados em bicharada e em murtas. Mais abaixo a horta. Magnífica! A minha infância perde-se e delicia-se nas batatas-doces assadas no braseiro que crepitava junto à entrada da cozinha. Esplêndidas e generosas. A fonte era um lugar sagrado. Pelo nome, Coração de Jesus, pela água pura e cristalina que saciou a minha sede e que alguém não preservou. Sagrada porque o meu avô acreditou que ela lhe retribuía as passadas com bilhas de saúde. Todos os dias, pela calada da manhã lá ia ele. Bebia, lavava a cara e acreditava que tinha rejuvenescido. Também o meu avô foi fantástico. Gente simples e pacata... A poesia divulgava-se na cozinha, junto à chaminé. Adorava declamar os seus poemas! Quadras de rima pobre com sonoridades de ternura. A concertina dançava nos seus braços e os seus dedos percorriam-lhe o corpo como se fosse uma mulher. A música acompanhava os versos que a memória retinha e a festa constituía a sobremesa esperada.
O monte, vamos ao Monte passar o Natal, diziam-me os meus pais. E eu estremecia perante o percurso a trilhar para lá chegar. Um caminho feito horas pela berma do canal, por veredas ladeadas por pinheiros e eucaliptos com os fetos abraçados aos troncos. E o verde confundia-se, aqui e além, com o azul o Rio. Sim, o meu Rio era azul. Uma jornada difícil! Não havia alternativa. O Monte ainda não se tinha rendido à civilização. Orgulhava-se de olhar magnificamente para o Sado e altaneiro para a cidade que, na outra margem, se insinua vitoriosa. O fim do mundo, alcunha que detestava, estava mesmo ali, no estuário do Sado. No entanto, a lembrança do rio, dos golfinhos, dos caranguejos, da batata-doce, do berbigão e do pão faziam-me transpor os obstáculos com alguma agilidade. Grandioso aquele pão! Uma fatia barrada com água-mel faria qualquer citadino crer na verdade do néctar celestial. O Monte ... bravo no apelido da família, bravo na escassez de riqueza, bravo nos acessos, bravo nas piteiras fartas em figos, bravo por se afirmar na diferença de outro qualquer lugar, bravo pela dureza que impunha aos que lá viviam, bravo porque único. Um nome próprio como a gramática nos ensina. Único, próprio e admiravelmente singular. Na minha cabeça o Monte ainda existe ... com tudo o que ele tinha. Os meus avós, a fonte, a horta, a praia e os caranguejos ... a minha cabeça não quer creditar que sobre a areia, a praia... que tudo já se cumpriu. O Monte morreu à medida que as pessoas morreram também.
E eu deixei de ter local para passar o Natal. O meu avô não toca concertina, a minha avó não vai comprar o pão… e os meus pais já não me dizem “Vamos ao Monte, neste Natal!” . O Monte morreu... e é com palavras que eu ressuscito aquela paisagem. O rio ainda existe e ainda é azul. Só que mais pardacento...
Escrevi este texto há quase um ano, quando me iniciei nesta "coisa" dos Blogues. Porque é Natal, ressuscitei-o.
Shiu! Da minha boca jorram descansos hesitantes. Usurpados e clandestinos. Dos meus lábios não escorrem palavras azedas e desconfiadas. Shiu!Oiço uivos de gente assustada. Melopeias atrapalhadas na toada dos caminhos. Andamentos vertiginosos. Shiu! E lá ao fundo, um pássaro executa primorosamente o adágio da manhã. Engulo a tentação de respirar. E do pátio regressam vozes aflautadas. Euforias guinchadas. Abraços perplexos. Bocas escancaradas vertem pedaços de mar e de sol. De ócios enérgicos. E olhos suspensos colam-se às janelas. Shiu! Escuto portas aferrolhadas que se desfecham. Chaves que tilintam cuidados de última hora. Sorvo ânsias de falar. Segredo salvações, no intervalo, empoleiradas ao portão. Shiu! As vozes passeiam felinas no corredor. Atropelos cinzentos, mesclados de cores do Verão. Desenham-se escoltas no parapeito da janela. Shiuuuuuuu! Estou oculta. Ninguém sabe que estou acantonada, ali! Não quero ser tela surrealista. Representação irracional, longe do mundo real.Shiu!Vejo e escuto. Obsessões humanas donde escorre a passagem do tempo e da memória. Da memória que se esgota. Do tempo que tem olhos. Não sei se vê. Shiu! Estou refém de mim. Aqui! Com recordações. Sem elas, não há expectativas. Porém, o tempodesvirtua-se.Ecala-se, também.Flacidamente. Como os relógios.Shiu!Estou sentada.Shiu!
Setúbal morfologicamente falando é um nome. Próprio. De pesca e de rio. De porto e de praias. Também de gaivotas. Feminino. Género serrano. Número sadino. Não se interessa por regras gramaticais que lhe subtraem a sua grandeza. Setúbal é um topónimo inscrito no mapa que nos delimita as fronteiras. Um mapa que nos tolhe os movimentos. Um mapa que nos diz onde começamos e acabamos. Eu comecei ali. Acabarei por aqui.
Um mapa que não que nos confina a língua que é do tamanho do mundo. Apesar da sardinha soar com dois rês… Palavras ditas nos versos de Bocage. Música cantada na voz de Luísa Todi. Uma serra amada e cantada por Sebastião da Gama. Poemas frescos e amenos, com rimas embrulhadas na areia da praia. Com os versos mesclados com a vegetação mediterrânica da Serra.
Setúbal é uma cidade. Enleia-se no rio e faz amor com ele. De madrugada. Ele beija-lhe os pés e diz que a ama. E o mundo pinta-se de azul. Ouvem-se êxtases aniladas. E há a serra. O verde exalta outra paixão antiga. Feitiço, evidentemente. Poligamia, também. E depois, se é permitida pela religião que praticam? É crime o amor, a harmonia? E a poesia, a cumplicidade? Os três numa orgia de sentidos, de cores e de emoções. De tantas surpresas. Um amor selvagem de corpos nus.
Nasci ali. No Convento de Jesus. E tenho saudade, mas não sei de quê. Uma nostalgia fragmentada por reminiscências difusas. Sumidas em tempos e espaços que não voltarei a ter. Que deixei. Perco-me em divagações e oiço claramente a concertina do meu avô.
E tenho saudades da escola que nunca mais vi...
O Sol já se escondeu... Precisamente quando, feliz, eu desatei a cantar. (Só por feliz eu cantei.)
Agora quero acabar, que já me dói a garganta, mas vou ainda cantando, temendo dar por mim de novo triste assim que esteja calado. (...Como se a minha Alegria nascesse de eu ter cantado.)
Comi. Porque ontem foi sábado. Porque me apetece sempre aos sábados. Porque sim. A gulodice soube a arroz-doce. Da dona Perpétua, claro! Há hábitos que não gostam de ser contrariados. Perdem o sabor e o aroma. Muito tempo no frigorífico acabam por secar.
Fiz compras domésticas, comezinhas. De comer. Sim, porque um prato de serviço lectivo, bem acompanhado por umas boas reuniões gerais e regada com conversas furtadas aos intervalos e doces sobremesas não lectivas, desnutriu-me a despensa. A míngua já era evidente.
Comprei livros. Um vício puro e simples, não uma doença congénita. Espero que transmissível. Um é especial pelas memórias que contém. Pela singularidade da sua autora. Conhecia-a menina, muito menina. Leiam-se as Mafaldisses - crónicas sobre rodase descubra-se a vida feita determinação.
Entenda-se que «a solidariedade constitui-se num dos mais fundamentais princípios da vida social. É um valor que se atribui aos outros e à comunidade que reúne os homens. Este valor traduz-se em actos concretos como partilhar, ajudar, aceitar, integrar, cuidar e preocupar-se. Logo, quem o faz, deveria fazê-lo com a mesma naturalidade com que esfrega os olhos para o dia todas as manhãs.» Ao, ler este livro de crónicas, lembrei-me das rampas em cimento que foram colocadas na sala quatro e na oito e …
Falei, falei e disse. Também ouvi. É costume dizer coisas ao sábado. Não é que resolva algum problema, mas que fico mais aliviada, lá isso fico. São partilhas, confidências, actualização de dados introduzidos durante a semana. Nos outros dias não há tempo. Nem lugar. Nem condições atmosféricas favoráveis.
Ri. Rimos. Enfim, ninguém é demasiado velho para rir, nem para chorar. Ri tanto que as lágrimas se intrometiam entre o ver e o ler. Impossível. Por isso, ainda gargalhávamos com mais intensidade. Caricatas, estouvadas, ridículas terá pensado quem nos viu e não compreendeu que só estávamos a rir. E que bem faz rir. Quem não ri é triste. Não entende. Não riem aqueles que não tiraram férias de si próprios. Há tanta coisa que me faz rir. Coisas despretensiosas. Desmedidamente simples. Não gosto de rir de coisas sérias. Fico sem vontade! Mas rio-me de mim própria. Assim, divirto-me sempre.
Chorava a rir. Os olhos fechavam-se embaraçados pela situação. Particularmente com o peso das lágrimas. Minúcias. Prazeres repentinos. Partilhados. Então, como ler a legenda da embalagem? Conhecer os ingredientes? Por uma questão de segurança alimentar era importante que o fizesse. Mas as lágrimas não permitiam. O corpo cedia ao compasso das gargalhadas. Num instante dominado, mal controlado, consegui dizer uma espécie de frase. Uma aliteração desarticulada, e nada intencional, de não sei quantos “lês”. Soou a chinês, japonês. Não sei, são línguas que, de todo, desconheço. Que estranhámos.
- Lê lá ali!
- Lêláli?Lêláli...
E ali, rigorosamente na padaria, junto à prateleira do pão embalado. Por causa da Broa de Batata, chorámos a rir. Nem de Milho, nem de Avintes e muito menos castelar. Uma gargalhada que nos acompanhou na viagem de regresso. Não comprámos o pão, mas ficámos com a memória. Um dia, não muito distante, uma outra amiga assegurava-me que “são partilhas de quem tem memórias. É isso também a vida.”
O medronhal acordou repentinamente. Sobressaltado. Os medronheiros espreguiçavam-se em movimentos cadenciados. As folhas, uma ou outra, deslizavam lentamente. Acabavam no chão a trautear trovas ao vento. Um soalho negro. Fresco e macio. Um tapete matizado de castanhos, de verdes e alguns amarelados. Aqui e ali, o vermelho-agonizante dos medronhos que não susteve o vento. Repito esta palavra por não conhecer letras para escrever outra. Pronunciei-a vento e soube-me a vento. Não sei outra.
Uma terra fertilizada pela sombra das grandes árvores. Uma terra que eu tinha nas minhas mãos porque a remexia na ânsia de encontrar isco para as ratoeiras. Formigas com asas, agudes para uns agúdias para outros, e uns bichinhos amarelos que se enroscavam numa vã tentativa de escapar, cujo nome já não me lembro. A memória é selectiva. Prefiro recordar os pássaros e os tais bichinhos sem nenhuma ligação entre si. Foi um vício horrendo que perdi no dia em que capturei um pisco vivo. Tratei dele numa gaiola que não tinha o cheiro húmido daquela terra. Não resistiu e eu derramei lágrimas de arrependimento. Nas ratoeiras nunca mais lhes mexi. A partir daí, apenas me tenho cruzado com aquelas que a vida arruma no meu caminho.
Uma terra, dizia eu, leve e solta. Cheirava a cogumelos silvestres. De todos os tamanhos. Com chapéu e lâminas cor violeta. Sem chapéu. Sem dúvida que preferia os Boletus aereus. Pela combinação de cores, pelo chapéu castanho-escuro, pelo pé castanho. Será por isso que os cogumelos dos livros usam quase sempre chapéu? Bem cedo aprendi a destrinçar os bons dos maus. Por sobrevivência. Por hábito. Todavia aqueles cogumelos eram carrascos de ninguém! Protegiam-se, só isso.
O grito que nos despertou ainda planava no ar. Uma contínua propagação sonora. Os piscos romperam a perenidade das folhas e abalaram. Os pardais insistiram na permanência, unicamente mudaram de medronheiro. As poupas, não as voltei a ver. Os medronhos teimaram em não continuar a amadurecer. Esperaram por mim. Eles sabiam que eu voltaria. Eu voltava sempre. A perturbação de silêncios assentou e doeu. As páginas escritas com caligrafias enternecidas, nas tardes que ali passava, acabavam de ser lidas por alguém que nunca as compreenderia. Por uma questão de linguagem. A minha, a dos pássaros e a dos medronheiros. Dos medronhos também. E dos piscos que trauteavam sublimes melodias.
- Já vou! Gritei de modo a ser escutada no lado de lá. Não queria intromissões.
A minha mãe persistiu no chamamento. Afinal, eram horas de lanchar. Convenhamos que a merenda vinha mesmo a calhar. Mas permaneci zangada durante algum tempo. Não era justo, resmungava eu, suspender sossegos. Cumplicidades e silêncios. Lanchei no mais profundo mutismo. De tal maneira, que a mãe resolveu compensar-me pelos danos provocados. Tinha uma surpresa para mim. Explicou que tinha dúvidas quanto ao momento da oferta, que não sabia se o deveria fazer. Eu persisti taciturna. Pensei que ela me estava a enganar, a corromper, com falsas promessas. Às vezes as mães têm destas coisas. Fantásticas, as nossas mães. Admiráveis, mesmo quando nos intrujam.
Levantou-se da cadeira em que se sentara. Olhou para mim, como quem olha para uma das maravilhas do mundo, e pronunciou qualquer coisa que não entendi. Eu continuava furiosa por ter sido compelida a deixar o medronhal. No exacto momento em que tinha apanhado uma formiga com asas. Uma dávida que tinha sobrado para mim.
Regressou com uma caixa de papelão. Grande. Muito grande, mesmo. Colocou-a calmamente no chão, devagarinho, numa dança mesclada de prazer, desejo e encantamento. Nos seus olhos destapei uma luz mais radiosa do que o usual.
- Vem ver. É para ti…
Eu fui, apesar de estupidamente despeitada. E vi o que sempre julguei impossível ver. O que acreditava impossível existir ao cimo da terra. O que não sabia que vivia. Assim tão bela. Ali estava, só para mim, uma boneca. Do meu tamanho. Uma perspectiva hiperbólica a mostrar quanto a boneca era, de facto, grande. Uma mulher! A minha mãe já a tinha trajado com um vestido cor-de-rosa, com folhos na saia e com uma fita que se transformava num enorme laço na cintura. Um vestidinho às florzinhas, como ela fazia para mim.
A boneca que antes tivera era de trapos. Dos retalhos que sobravam da costura da minha mãe. Paulatinamente, olhei para ela e tomei conta da realidade. Era de papelão, só a cabeça rodava, pés e braços esticados, olhos pintados de azul, boca vermelha, duas pintas fingindo as narinas, cabelo castanho-escuro. Apesar da minha incredibilidade, sorri para ela.
Hoje, tenho a sensação de ter aberto uma gaveta, dentro de mim, e ter reinventado o seu conteúdo. E dos silos dos meus sossegos reapareceu a saudade.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]