contar [no resto das sombras]
- Conta outra vez. Apenas o que vês.
- Já o fiz. A conta está certa. Três!
- Eu estou aqui. Dentro de mim. O exterior não conta!
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- Conta outra vez. Apenas o que vês.
- Já o fiz. A conta está certa. Três!
- Eu estou aqui. Dentro de mim. O exterior não conta!
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Acordei destapada pelo Sol que entrara afoitamente pela janela. Que descuido, o meu! Assim, como se eu fora raios que ele desbaratara em criança… Não era! Nem sou!
O meu corpo desejou chuva. Ao menos, ela chorava a meu lado. Molhávamos as mágoas. Emergíamos das dores. Do alto. No aprumo de ser.
Subitamente, lembrei-me que não posso apressá-la. Ela cai quando quer cair. E tombar. Na genialidade de acontecer. Escorregar. Alcoolizado desejo de molhar. Tantos rostos! Muitos! Copiosamente…
E eu cheguei a acreditar que ela apenas molhava o meu… Só que nunca aconteceu. Cheguei a pensar que estava apaixonada, mas descobri que era apenas desejo. É que eu sinto pela chuva a mesma coisa que sinto pelo Sol...
[fotografia de Ricardo Silva]
e por tanto patear, até chego a pensar que o pato plagiou as penas do pavão. que disparate! como se a ave galinácea deixasse!! eu é que nem reparei que o lindo palmípede é de verdade. não foi por mal. é que por força da vaidade, há muita ave a acusar o pavão.
ser vaidoso sem ter arte é coisa condenável. a estéril vaidade não merece perdão. o pato é um pato. o pavão é um pavão. só não vê quem tiver fraca a visão, pois a prosápia é humana condição. nem consta que a bela ave tenha interesse pela mitologia. de narciso nunca ouviu falar. e, em sinal de desagrado, o pato pateia com as patas no chão que o narcisismo é um mal global. grasna ele e grasno eu.
fotografia de Jorge Soares
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
as 3 peneiras
Ao passar pelo Revisitar a Educação deparei-me com este texto de António Botto. O boato e a mentira não são invenções modernas, todos sabemos. Deve ter nascido no momento em que o Homem começou a ouvir. Depois a falar. Há muito que andam por aí, têm a mesma idade que nós. São males danados na vida da gente. Propagados por quem não tem nada para fazer. Também por quem os edifica na má fé. Na ingorância ou na vontade descontrolada e narcísica de afirmação. São bocas escancaradas convencidas que morder é próprio do cão. Existem mentirosos de todas as cores. Temos boateiros de todos os sabores. Que os há, há.
Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”. Talvez não seja o caso. Não há sentidos ocultos. Interpretações hermenêuticas. Se uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma inferência moral, então este texto é uma alegoria. Ou quase.
Vale como exemplo.
O pequeno Raúl saiu da escola a correr, chegou a casa muito excitado e, depois de beijar a mãe, exclamou:
- Já sabes o que dizem do António?
- Espera um pouco, tem paciência. Antes de principiares, lembra-te das três peneiras…
- Mas quais peneiras, minha mãe?
- Sim; vais ouvir e saberás. A primeira chama-se verdade. Tens a certeza de que é certo o que me queres dizer?
- Não; se é certo, não sei.
- Vês?... E a segunda chama-se benevolência. Será benevolente, será boa, essa notícia?
- Não, minha mãe, não é boa.
- E a terceira chama-se necessidade. Será necessário repetires tudo isso que te contaram desse teu camarada e amigo?
- Não, minha mãe.
- Pois se não é necessário, nem benevolente, e talvez nem seja verdade, entendo que é preferível, meu filho, calares a tua boca.
In Os contos de António Botto (1942).
fingimentos desnecessários
arroz genuíno
Ao sábado como arroz-doce. Na dona Perpétua, como sempre. Uma gulodice ao fim-de-semana. Banal. Corriqueira. Gostosa. Admirável. Prefiro as coisas simples e verdadeiras. Sem intrujices com sabor a canela. Sem astúcias com cheiro a limão. Gosto que os meus sentidos estejam despertos para a verdade açucarada de uns bagos desfeitos em leite fervente. Não os quero atiçados por estranhezas cozinhadas ao intervalo. Quero comer arroz-doce que me saiba a arroz-doce. Odiá-lo-ia se não fosse assim. Se um dia me souber a embustice não vou ter com ele aos sábados. Nem noutro dia qualquer. Mas ficarei decepcionada e muito amofinada.
Que eu minta, menos mal. Se as estatísticas dizem que eu o faço a cada cinco minutos, que seja. Afinal, toda a gente mente com quantos dentes tem. O arroz não, que é genuíno.
Verdejantes plantações. Terraços de verde que eu via da janela e que ainda persistem na minha memória. Lá estavam eles muito quietinhos, com os pezinhos na água. Quando o vento chegava ficavam desinquietos. E as ondas de verde propagavam-se no horizonte. Na monda do arroz, elas cantavam e cobiçavam os rapazes com sorrisos e olhares. Os braços rebaixavam-se na água a desenraizar as ervas daninhas. A sua vida era fazer essas coisas e molhar-se no solo alagado. E cantar com as mãos enrugadas e calejadas. A voz era límpida e sorria sempre que via crescer as espiguetas do arroz. E rezavam para que a colheita fosse boa.
O arroz não disfarça. É assim e pronto. As pessoas é que não. Movem-se por interesses que extravasam as valas dos arrozais. O arroz rodopia ao sabor do vento e dança com ele. As pessoas não ouvem o que ele lhes diz. Com doçura. Olham para o Sol e querem a luz só para si, mesmo que o mundo fique às escuras.
Enquanto for capaz, não deixarei de comer arroz-doce. Só por ser autêntico. Como os olhos celestiais com quem o partilhei. E tudo foi tão gostoso!
(Fotografia da Internet)
Aqui sou seu. Sem correntes, sem algemas, sem peias que lá fora me impõem. Aqui revelo-me como sou. Aqui dispo-me de circunstâncias conjunturais. Aqui sou apenas refém de mim. Aqui posso colorir a liberdade com as cores que eu sei de cor... Aqui digo sem medo de represálias. Aqui digo verdades. Aqui digo mentiras. Aqui finjo ambas. Aqui minto descaradamente. Tudo é fictício, tudo é teatro. Na verdade, todos enganamos, todos mentimos. Máscaras e mais máscaras que se revezam entre a comédia e a tragédia. Nada as impede de percorrer ruas, cidades, países, o mundo. Jardins proibidos. Paraísos inventados. Vidas fingidas. Aqui, há que simular, há que aparentar. Tudo é hostil, tudo me irrita, tudo me afecta. Tudo amo. Tudo se constrói num imenso deserto mental do qual nem sempre soube, ou não quero, sair.
Aqui mostro-me transparente. Exponho a minha nudez aos vosso olhos. Aqui me oculto na opacidade do meu corpo. Aqui exibo a minha pele translúcida. Aqui sou como sou. Ficção que a vida escreveu. Sou Menina e Moça que já fui; errei por Cidades e as Serras; sou Gente Singular. Sou Húmus, sou Clepsidra, sou Tanta Gente, Mariana... Perdi-me no Labirinto da Saudade e reencontrei-me no Vale da Paixão. Chorei quando O Principezinho me fez sobra, sorri ao ver a minha morte julgada na Barca do Inferno. Colhi A Maior Flor do Mundo, fiquei estupefacta perante a Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho. Irmano-me na sorte de Os Bichos e até sei Um Segredo sobre passarinhos... E porque a Demanda se faz desejo de cor nunca vista, eu não Sobrei da História dos meus Pais, seguramente. Aqui posso partir à descoberta do Conto da Ilha Desconhecida saindo pela porta das decisões. Ou aguardar calmamente à porta dos obséquios. Aqui posso Falar Verdade a Mentir ...
Aqui, nem sempre sou eu! Aqui eu posso não ser eu, sendo eu! Eu cumpro-me no paradoxo de ser e não ser. Eu sou porque tu existes... Eu sou produto da evolução da minha espécie e espero que a selecção natural actue sobre mim e melhore a minha adaptação a um meio que fere e que dói.
Ignoro de quem descendo. Rezo para que não tenha em mim um réptil derrotado por um qualquer dinossauro.
Dinossauro tem feminino!Tem?
(Imagem de Alma Em Flor)
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