É o braço do abeto a bater na vidraça! É o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, a trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia mais da terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me à beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!
Nos dias cinzentos que correm enfraquecidos, na dor translúcida que me trespassa, na indecisão fina que me afoga, na esperança caída no chão de terra batida, queria amansar a dor. Remover a incerteza e reavivar a cor do sol. Colorir os dias, a lua e a noite. Disputar o brilho das estrelas e rir com elas. Queria ser alma, ser gente e velejar até lá. Reaver a casa grande pendurada na areia com janelas prenhes de luz. E as riscas azuis que se rebolavam no calor branco que cobria as paredes. Queria os mistérios que permanecem espalhados na duna. As toadas dos passos. O restolho das vozes. Queria os ninhos de sonhos que vogam pelo azul do rio. As marés, as ondas e o bote. O aroma da canela naufragado nestes dias frios e cinzentos.
Se agora fosse natal, a minha escuridão desfazia-se prolongadamente num abraço profundo. Das janelas destes dias cansados e frios, trepava até ao céu. Fundeava o tempo e privava-o das estrelas que ele me roubou. No Natal.
Há um ano, criei um blogue... dizia eu que para "armazenar" coisas... um arquivo...Há um ano, mostrei o blogue ... em segredo e corava pela ousadia...Hoje, para ti, vai um beijoabraçado, GMV...
Hoje, para todos os que aqui têm chegado, vai a minha gratidão...Hoje, reescrevo o mesmo post... com mais emoção nas palavras e muito embargo na voz. No silêncio de mim ...
Choupana onde se ri vale mais que palácio onde se chora...
Sou um canário e o meu nome é Mário. Belo, amarelo, dois anos de idade. A minha melhor qualidade? Cantor, naturalmente! Vim de longe, de muito longe... Viagens de família, linhagens a cumprir, rituais repetidos. Das Ilhas Canárias, conflito adiado na História assinalado... Miraculosa plumagem! De amarelo pintado, a cantar desenhado... ou branco ou mesclado, mas salve-se a tradição que me confunde com o Sol. Sempre fui fiel às tradições. Do Natal, do Mar, do Falar, do Cantar a dor no Fado sofrida. E então, se a alpista é miragem de ave canora engaiolada? Gaiola? Belo e encarcerado! Gaiola? Cantor amordaçado!Tristes aqueles que não entendem a liberdade da gente! Destino fadado - fada má certamente - para mim. Assim: pássaro , belo, prisioneiro, aedo , trovador... Tanta falta de rigor. As asas por voar, as penas - que não são pequenas - a crescer, o canto a esmorecer... Triste sorte a minha! Determinada e fechada junto à janela da cozinha. Espaçosa, arejada, escura nas madeiras. Tudo demarcado e marcado pelo gosto. Castanha , florida, ensolarada - ai, Sol que não me reconheces - comestível, perfumada, cozinha... Ao fundo a janela. Grande, envidraçada, lindas cortinas de renda ... brancas e com muitos folhos. Cobres aos molhos. No fogão e no balcão. Reluzentes - tão areados, coitados! Ampla, ventilada, dourada, uma enorme assoalhada, eis a minha gaiola. Suspensa num suporte também dourado. Requinte engalanado, maldade abismal de quem crê fazer-me bem quando eu me sinto tão mal. Liberdade paradoxal, perplexidade num pássaro alado sem asas para voar... Poleiros a reluzir, baloiço - que luxo - de embalar e sonhar com as asas que não tenho, porém invento. Passatempo para ludibriar o tempo... Tudo perfeito. A cozinha, a gaiola e eu que caibo nela, à janela. O que não entendo mesmo é se me encontro preso - definitivamente ou se me fizeram refém não sei de quem. São, evidentemente, situações diferentes de pronunciar cativeiro. Preferiria saber a ter que adivinhar. Só que não sei qual escolheria. Que importa quando não me permitem a escolha e se não tenho asas para voar? Conformo-me e pronto! Sou pássaro amputado em arames castrado! Enclausurado? Paciência, rendo-me à evidência de príncipe encantado no palácio algemado. Inocente mentira de quem só pensa no caminho para lá... Íngreme, penoso ? Sei lá, se a possibilidade de experimentar não há? Somente uma vez... Talvez não vá gostar e possa voltar... Eu volto, prometo! Insensíveis, cegos na ganância de me prenderem ali... a cantar.... quando eu estou a chorar lágrimas reprimidas, dores sentidas, liberdade aprazada sem dia marcado. Raptado ? Alternativa ao nada que é já tudo, tanto na libertação almejada. Refém sem data no tempo que não passa, mas desgasta. Bastam-me as culpas que recuso, o perdão que não peço, a alma que não vendo. Antes pássaro amarelo num livro decalcado. Resta-me a janela que é a ponte entre o que sou e o que desejo e não vejo, apenas sonho! Lá fora o vento agride o bom tempo que não há. A chuva repete-se na ladainha costumeira. Ping ... ping ... gota a gota. Um relâmpago de quando em vez ilumina a noite escura que não me permite sonhar... Um trovão que de imediato me vem acordar. Vejo ninhos e árvores e sei segredos que não desvendo porque é castigo estar aqui. Imagino-me pássaro a voar, a voar e apetece-me cantar a minha loucura... D. Quixote, pois então. Mas não, ouvi um trovão. Que vozeirão a vociferar a razão de eu estar aqui. Ainda bem que não o percebi. Cumpre-se a Torre de Babel. Aquilo não são modos de falar com ninguém. Apenas me assustei, contudo não gritei, juro! Apenas acordei... A minha vida é um temor permanente. Receio a fuga que idealizo e não concretizo. Temo a prisão que me nega a evasão que desejo. Estremeço quando a porta se fecha a adiar, a adiar... Arrepio-me com a possibilidade de a deixarem escancarada... Fecham-na sempre. Vida madrasta . A Gata Borralheira foi tão feliz! Oiço o vento a entoar melodias de embalar, cantigas de amigo... Parto com ele à conquista do mundo que me foge, grito a fantasia que há em mim e canto a magia da meia-noite. A fada perdeu a varinha de condão! Não tem perdão. Não! Não! Lá isso é que não... Da janela eu tenho o mar. Vejo pontes e barcos e homens, muitos homens. Oiço vozes escondidas e perdidas no movimento contínuo das marés. Encontro sonhos adiados nos olhos dos mareantes que se fundam no cais. Sem poesia, sem paixão, com adamastores na imaginação. Sucumbem ao peso da viagem que nem começam. Percebo ondas que vêm e vão magoadas de não continuar em movimentos inquietantes, irrequietos, ondulantes, sedutores, mas tão redutores. Não deslumbram as varinas atrevidas , bamboleantes e cantantes. Livre circulação, não! Marionetas, controladas à distância pelo tempo a dizer que não. Os homens descontroladas não entendem que são prisioneiros da vida, amarrados aos sonhos que não levam para o mar. Livres e tão presos, os pobres... Não sabem que o mar é decepção de quem quer partir e fica ali. É a fantasia, a razão, o espectáculo , deixa de quem só sabe ficar... E eu queria tanto ter um barco, galgar distâncias, cumprir a História: navegar, navegar. Ir para além da Taprobana. Em desejos e mitos concretizados, mais do que poderia a dor das minhas penas e, entre sonhos meus, desenhar a minha saída para o mar, Utopia decrépita em gaiola doirada. Barco fundeado ao largo, lágrimas reprimidas na viagem por acontecer. Miserável, para que queres asas se não sabes voar? No outro lado há frio e vento e chuva e um calafrio percorre-me o corpo ... sinto-o ... inunda-me a alma. Vem trovão! Acorda-me... Lá fora, as árvores, trémulas e amedrontadas, agitam-se. Quem diria o medo delas! Estouvadas que não entendem que é somente o vento a correr por ali. Cavaleiro andante a cavalgar , a saber, a conhecer. Invejo o vento que é livre para voar e pensar. Amo o vento que não se deixa amordaçar. Há vendaval de novas no jornal ! É o vento a sustentar o pensamento. Um rapazito corre. Ele quer percorrer o tempo, que se lhe escapa, para o domar. Ignora que a ventania não se dobra à vontade da gente. Pressinto-o triste. Tão triste...A sorte que nós temos ! Tu petiz infeliz correndo pela rua, apesar do vento... Eu canário perdulário em gaiola doirada... cara envergonhada a espreitar à janela. Olhos sequiosos de ver, boca faminta de não ter,, mãos calejadas de tanto pedir, roupa gasta a desistir... Tens, meu amigo. a liberdade de fugir! Eu é que não! Que vês? Não te iludas. Aparência ilustrada, ave desasada ... Espera! Fica mais um pouco Estou rouco de cantar para ti... Eu canto! Não está mais ali. Encontro desarrumado, mas tão perfumado. Foi uma rosa que eu vi: bela, pequenina, efémera. Eu queria contar-te um segredo. Nem o meu degredo repetido, nem arvoredo escondido. Tão somente um segredo. Pequenino! Que fosse nosso, meu e teu. Olhos nos olhos bastava para nos entendermos... tu não olhaste para mim. Divina cumplicidade na amizade a haver. Um segredo... Amanhã é Natal! Narcotizante inebriante de tanta gente, simplesmente porque é Natal. Amarguradas e desajustadas as pessoas circulam descrentes das luzes reluzentes. Formigueiro domingueiro em dia de semana. Tão apressadas que não dão por nada. Nem reparam que estás ali e eu aqui. Compram, compram sem razão. Predestinadas... coitadas! É Natal... elas estão distraídas, tu não. Cumprem o calendário, tu inventas o teu fadário. Elas têm, tu és, eu estou. Dá, não compres que corrompes o amor que contigo nasceu. Amanhã é Natal... Porquê se amanhã é segunda-feira? Vamos fazer Natal? Para quê se não aprendeste a brincar. Inutilidade tamanha! Um brinquedo de infância para quem não é um criança... e eu nem vi o mar. Anacronia com sentido proibido... Vem! Eu ensino-te a brincar e a rir e a chorar e a sonhar e a amar e a perdoar e a cantar... Tudo, excepto comprar na véspera de amar. Um dia será Natal. Numa fuga planeada. Definitivamente! Aqui, aí, sempre!
- Bom dia, Mário. Dormiste bem?
-Tão lindo o nosso canário...
- A gaiola está bem ali?
- Cuidado com a porta!
- Fecha a janela, não vá ele fugir...
Janela trancada. Cortinas cerradas E eu só oiço o mar...
Ela não foi. Se fosse não o veria. Natal não anda, garantia ela, ao mesmo tempo que reclamava do garoto mais tento na língua. Mais empenho e responsabilidade. E nada de criatividade. Os dias corriam enxovalhados e a mulher entrelaçava sonhos de menina enquanto descascava as batatas. Vem! Insistia o petiz, afiançando que o Natal andava e que a mãe é que não o queria ver. E explicava ao filho que não era uma questão de querer, porém de poder. Ela não podia. Ainda não recebera o ordenado do mês. A Senhora, era assim que evocava a patroa, tinha partido numa viagem precipitada. Nada programada. Não tivera tempo de lhe pagar.
Ó mãe, vem ver o Natal! Gritava o petiz extasiado à janela. E ela foi. Por incompetência. Por não tornar claro o que para ela era evidente. Não recebera e o Natal precisava de dinheiro para andar. O miúdo era pequeno… por mais que se esforçasse, ele nunca compreenderia. O melhor era esquecer a cisma do filho. Os dias aconteciam maltratados e a mulher sentia a dor da bolada no peito. No corpo todo e nas prateleiras também. Fora uma tacada violenta. A bola saíra com violência do taco, a Senhora dizia putter e ela não entendia de que falava, e correra por caminhos desacertados. Atingiu-lhe a dignidade. Um golpe que, numa fracção de segundos, a impediu de ver o Natal. Por não poder, pensou ensimesmada.
Vês, mãe, o Natal a andar? E ela via multidões embrulhadas nos sacos que carregavam nas mãos. Observou luzimentos animados. Viu estrelas a bruxulear na porta da mercearia. Viu o fumo no ar. No passeio, na esquina da rua, adivinhou o carrinho do homem das castanhas que atraía quem passava. No assador de barro, estalavam mínguas retalhadas. Viu entradas e saídas. Correrias aceleradas, todas muito bem decoradas. Mãe? E ela voltou… Ali, mãe… olha o Natal a andar! Aqui, mãe. Olha como ele anda!
O homem aproximou-se da janela. Envolveu o garoto com gestos afeiçoados e presenteou-o com um balão amarelo. Depois olhou para a mulher e abraçou-a com um conivente sorriso. E de repente, sorriram tanto que todos foram um. Já acreditas que o Natal anda, mãe? As lágrimas impediram-na de responder. Via multidões embrulhadas nos sacos que carregavam nas mãos, ao mesmo tempo que rasgava a pele da última batata.
Há dias danados. Tão estúpidos! É em dias assim que o aforismo irrompe na boca da gente muito arrebatado. O melhor teria sido ficar em casa!!! De preferência, subordinada ao edredão. Na falta da areia e porque uma pessoa não é propriamente uma avestruz desconjuntada a correr que nem uma maluca.
Pois há! Só que fazem intervalo.
Hoje começou assim. Tão frio que o calor rareou até ao fim da tarde. Tão tarde que a luz se alumiava no interruptor. No meio de despedidas apressadas, ele olhou para mim e segredou-me uma confissão pouco meritória.
- Nunca tinha tido uma positiva… é o meu melhor presente de Natal…
Há dias admiráveis. Num pequeno gesto, numa palavra, num olhar… E se é verdade que o Natal é quando um homem quiser, não é menos verdade que o dito depende mesmo da mulher… em qualquer local. Hoje foi ali!
Deitou-se, pouco depois do jantar, sem que o sono tivesse chegado. Nem a menor advertência. As pálpebras não tiritavam ao ritmo de reflexos sonolentos e as suas grandíssimas pestanas negras calavam enleios enamorados. Arrumou-se na horizontal no cumprimento de disposições paternas.
A noite aconteceu muito cedo. É sempre assim no Inverno. Sobre a mesa-de-cabeceira, o candeeiro a petróleo atrevia-se a ser luz. A torcida subia e descia disposta a cooperar. A chaminé enfarruscada queixava-se de não ter sido limpa com o jornal, mesmo assim cumpria a sua condição. Devagarinho, emanava um bruxuleio amarelo-turvado. O quarto era pequeno porque a casa era pequena. A cama era mais pequena ainda. O frio de Dezembro corria friíssimo de parede a parede. Do chão ao tecto. E ele, por tanto tremer, refugiou-se no calor de dois cobertores às riscas. Largas, castanhas, amarelas, verdes e vermelhas. Em lã churra de ovelha. Pesadas e quentes como o Sol que, na sua cíclica obediência, se deitava mais cedo. Mas era aquela a luz que lhe permitia penetrar na pele das coisas. Por isso, descia o pavio e extinguia a chama.
E via a noite de estrelas cintilantes. Meninas e franzinas abraçadas à escuridão. Adivinhava-lhe intenções. Pedia-lhes mais esplendor. Exigia-lhes que denegrissem o cristal. Que não plagiassem o candeeiro que bruxuleava sempre antes de morrer. De entre todas, uma tinha mais esplendor. Subiu até ela e foi ver o Natal. Que não cabia numa casa tão pequena. E empoleirado na Cygni aproximou-se do Sol. Viajaram os dois, com o céu na ponta dos dedos. Ali! Acolá! Não, mais para aqui… Vamos! E foram… Descobriu brilhos ilusórios. Delírios refulgentes de luzinhas que tremeluziam na cidade. Correrias desvairadas alindadas com laços de metal. Encontrou gestos repetidos em juramentos de fé cumpridos no dia. Maltratados antes. Crucificados depois. Destapou hipocrisias que bruxuleavam rumores resolvidos a cumprir a tradição. Estranhou o brilho excessivo de luzeiros a iluminar. E boquiaberto pensava que tinha aterrado num céu a brincar. Mas depressa percebeu que se tinha enganado. Que no céu não há publicidade, nem centros comerciais.
E por tanto ver, acabou por adormecer. E sonhou que as estrelas do céu é que são autênticas. Bruxulear reside na circunstância de libertarem energia na tranquilidade do seu ser. Mas lamentou a cobiça do Sol que, por inveja, lhes perturba o brilho. Durante o dia, porque a noite há outro brilhar.
Enquanto dormia, segredava à estrelinha, que espreitava à janela, que era um menino afortunado. Tinha um candeeiro a petróleo humilde no seu cintilar. O pai e a mãe dormiam tranquilamente no quarto muito pequenino. De manhã, tomariam o pequeno-almoço juntos. Depois, brincaria com o papagaio de papel que o pai lhe fizera com um fio do tamanho dali até às estrelas.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]