Ele estava ali. Na verdade, estranhei. Calado e amargurado. Bravio na agressividade que amansava com os dedos irritados pela insatisfação. De vez em quando, espreitava por cima dos exasperados pardais enxovalhados nos beirais dos telhados.
Ali, estava ele. Estupidamente sombrio. As nuvens. Uma a uma, ele as contava. E descontava-lhes as figuras depravadas que mostravam. Descobria-lhes assíncronas vontades. Nos olhos, destapei-lhe as arritmias lascivas que teimavam em ripostar.
Naquela tarde, eu tinha que o deixar descarregar nas nuvens. Permitir que as atingisse na loucura que ousavam. Nas indecências que escreviam. Assim, num bilhete ardente de cinzentos imprudentes. Comprazer-se na indecência de as esmurrar. Pela leviandade dos baixos vícios. Pela grosseria das fagulhas que troavam gemidos espavoridos. Tinha! Mesmo que, na extemporânea trovoada da perversão, as nuvens ficassem.
Naquela tarde, não deixei! As nuvens não tinham culpa de carregar projécteis impacientes por outros ventos. De não saber cair inteiras. E ele sangrou. Para não se magoar. E chegou lá com os pés no chão. Então, reparou nos pedacinhos de azul que esperavam um poema favorável. E sorriu. Com gentileza.
É Agosto. O sol anda quente e o tempo seco. Não chove por razões que o coração conhece. A chuva encharca os corpos. Forma-se nas nuvens que saracoteiam alegremente. Metamorfoses condensadas às voltas no ar por causa do vento. Penhascos negros. Desenhos fingidos. E o rapazote grita que vê um peixe no céu. E a mãe não vê nada. Não acredita Mas pergunta-lhe onde. E ele ri. O seu dedinho afoito aponta a direcção certa. E está ali. Um peixe e mais à frente um avião e uma ovelha. E muita gente também. E pergunta, apatetado com a falta de visão da mãe, se ela não está ver. Ela finge que sim. Tudo corresponde ao que ele diz, garante. No entanto, não consegue descortinar desenhos infantis. Muito menos no mar. Mas diz que sim. E riem-se culpados. Um viu o outro não. E o céu está azul, o mar é que não. E indica os olhos, o nariz a boca e o cão. Olha o rabo dele, mãe. Só que o cão morde, alerta a mãe. O petiz sabe, ela é que não. Na sua cabeça já não entram ilusões. Tudo é excessivamente real. E uma dor ganha forma definida. Dói com sabor a desilusão. Com aroma a desencanto.
E bem lá no alto, mais para a esquerda, vislumbra uma teia e uma aranha. Enredam-se os fios. São fortes e resistentes à chuva. Por isso, capturam as suas presas. Ela não compreende, porém vê. Assusta-se. E as nuvens seguem por atalhos vagabundeando pelo céu. Para locais que ela conhece, ele ainda não. Para um sítio longínquo chamado passado. Outro lá para a terra das recordações. E naquele instante deseja apenas o futuro. E chora. As mãos têm gotículas de água nos dedos. Os cabelos encaracolam-se com a humidade. O chapéu é um acessório, logo dispensável. O garoto pede-lhe que feche o guarda-chuva. Que não chove. Que ela está a imaginar chuva em Agosto.Mas em Agosto também chove. Chuva que não molha, porém arranha.
Em Agosto, a mãe escreve palavras que falam de afectos, ao mesmo tempo que dos seus olhos tombam prantos decepcionados. E no papel nasce um desenho manchado. O menino olha e anuncia satisfeito que a mãe rascunhou uma nuvem. E que ela parece uma rena a dançar. E pede-lhe que desenhe só para ele. Aponta para o Pai-Natal, mais além. Vês, mãe?
Faz mais! Assim, pode guardar os desenhos na gaveta. Ou encerrá-los no seu peito para mais tarde os redesenhar, mesmo contra o vento. Ou apagá-los com uma borracha branca. Ou riscá-los como os aviões fazem ao céu. E conclui que a vida é feita de enganos e desenganos. De ilusões e realidades. De lágrimas de rir e de chorar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]