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ponto de admiração

ponto de admiração

12
Jun09

cantar [o sabor das asas no telhado]

Paola

 

fotografia de  Gabriel Gonzalez

 

 

 

 

Em cima do telhado, restolhavam trinados amarelos. A manhã trauteava réstias de Sol, com uns brincos de oiro pendurados nas orelhas. Os rubis refulgiam vermelhos incendiados. E ele esvoaçava de uma telha para a outra. Pulando como quem expulsa medos. Para, abundantemente, conservar a paixão. E cantava. O pássaro desafiava regozijos alegres. De uma telha para a outra. Sem ousar saltar para o outro lado da estrada. E olhava. De seguida, cantava. Ornatos musicais. Andamentos em sol maior.
 
Por baixo do telhado, um som. Música tónica e robusta. Martelo ritmado no aconchego das tábuas. Uma serra serrava. Ia e vinha, num vaivém semeado. E voltava ao princípio. Corrigindo imperfeições. Ouvia-se o gesto que martelava descontentamentos. Queixumes de satisafeitas canseiras. Da boca escorriam suores admirados. E as mãos amaciavam obras liquefeitas. Pressentia-se o ardor dos dedos que lavravam a madeira, na recusa da cola. Bebia-se o consolo de evitar os pregos. O carpinteiro sabia. E não queria rachaduras que fragilizassem a construção. Persistia. Na roda da água. Que bebia por baixo do telhado. No silêncio que brilhava quando o carrossel girava. E o pássaro gorjeava que o homem parara. Simplesmente contemplava.
 
Do outro lado da rua, um pássaro voava... Edificou um ninho no beiral inclinado da confiança e adormeceu a ler o poema. Então, cantou.
 
 
19
Mai08

olhar

Paola

 

h à janela - devaneios pelo jardim

 

 

 

 

Sentei-me para espreitar pela janela. Aberta. Totalmente, como se não existissem caixilhos e vidros agarrados por aros. Numa cadeira que restava de uma mobília qualquer. Madeira escura com marcas de tempo que rangia perante a minha vontade de ver. Sem braços, o que me obrigou a sossegar os meus no parapeito de mármore que afastava a janela da rua. Um limite que ela queria galgar, todavia nunca ousou. A cadeira esticou as pernas numa magnânima tentativa de partilhar comigo segredos e fantasias. Tantas histórias que ela sabia de cor! Tantos livros que lera! De poesia, particularmente. Tantos os amores que celebrou, tantos os que chorou.

 

À janela, virada para a rua, eu espreitei o mundo. Lá ao fundo eu vi um jardim. Grandioso na simetria das suas formas, esplêndido na  grandiosidade, majestoso na perspectiva, benévolo nas desigualdades. Geométrico. Generoso em água e luz - lagos, repuxos e fontes. Jogos construídos no desenho das sebes e arbustos. Deslumbrante, este jardim. Sumptuoso. Excessivamente formal. Perfeito. Desenhado. Sem dúvida com régua e esquadro. Também com transferidor. As plantas, as flores não comunicam entre si… extasiam-se. Estranham-se. Prefiro a roseira do meu jardim. Pela humildade, pela pureza, pela irregularidade. Nasceu assim.

 

Sempre ambicionei ter um jardim só para mim. Invento um com cheiros. Com bonsais, bambu, buxo com desenhos estranhos, estátuas por todo o lado. Degraus perdidos aqui e ali, numa relação harmoniosa com a natureza. Com cerejeiras e cascatas. Tudo muito arrumadinho e perfumado. E com a árvore da felicidade. Perfeito. Contendo esconderijos propícios a promessas de amor eterno. Com visíveis raízes de árvores milenárias. Não sei porquê, mas com cheiro a incenso. E com ladainhas de súplicas aos deuses. Recantos favoráveis à reflexão. À descoberta de mim. Quem sou eu? Não sei! Devaneios irreflectidos de quem está à janela.

 

 Permaneço sentada numa cadeira que já está enfadada de mim. Eu subsisto. Ali.

 

É então que vejo montes e vales. Riachos e ribeiras. Pinheiros e oliveiras. E silvas com amoras pintadas de negro-maduro. Terreno desigual, sem estátuas nem jogos de água. Com caminhos desenhados nos carreiros enlameados. Porque chovera no dia anterior. Vejo cardos e tojo. Tudo cheira a rosmaninho e alecrim. A carqueja abrilhanta-se no amarelo das suas flores. No perfume das mimosas ouve-se no zumbido das abelhas. As papoilas misturam-se com as azedas – tantas que eu comi na minha infância. E onde crescem elas agora que não as vejo? Gostava do seu acre sabor... Para desenfastiar havia sempre um adocicado “rapazinho”. Uma seiva açucarada feita  néctar divino expunha-se assim. Uma flor pequenina, de cor avioletada, cujo nome verdadeiro desconheço. Sempre lhes chamei “rapazinhos”. Está assim na minha memória. E vai perdurar. Tenho charcos que sobraram das chuvas e lá dentro residem rãs e sapos. Estes só como enfeite, porque os abomino. Ao fundo, estende-se um medronhal. As copas dos medronheiros abraçam-se e beijam-se descaradamente. As flores são brancas. Os frutos terminam vermelhos. Os medronhos embriagam-se de alegria. Voluptuosos, riem à gargalhada.

 

No medronhal moram piscos de papo amarelo. Um passarinho discreto, canoro, pensativo ao Sol. De vez em quando surge outra ave. Pedante na poupa pontiaguda que lhe deu o cognome. E aparecem melros. Negros. Mais à direita da casa principal, uma cisterna. Guardadora de águas. Um poço que não é poço. O acesso à água faz-se por uma espécie chaminé. Que não é chaminé. Tudo o resto é um imenso terraço forrado a cimento. Aí invento. Invento-me. Ouço-me. E grito. O vale repete-me. O vento passa e rouba-me o bocado de carvão com que gizo brincadeiras de criança. Jogo aos quatro-cantinhos sem saber que o mundo não acaba ali.

 

Eu não tenho jardim. Se o tivesse não o agrilhoava em moldes geométricos. Não o planeava formal. Projectado. Antes instintivo. Um jardim. Fechei a janela. A brisa da quase noite resfriava-me as pernas e os braços. A minha cabeça permaneceu no medronhal com a convicção de que um espaço só é venerado quando nele se avolumam os silêncios. Então, sobeja a saudade.

 

 

[fotografia da internet]  

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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