Já não é tempo de cerejas. O sol cai sossegadamente no colo da colina e os homens abdicam das cestas. Calam-se as cantigas dos dedos e desarrumam-se as mãos que não acertam com a eficácia da mudança. É um retrocesso que se estende pelo vale. Apenas uma brisaabafada segue o mesmo caminho. Sem atalhos. Pelo trilho das pedras. Para recuperar o sentido do compromisso, os pássaros empoleiram-se nas árvores despidas de frutos. E olham numa incessante busca de equilíbrio.
E estepássaro que aqui chegou conserva o ritual e recusa-se a construir o ninho no chão. Crava o olhar no infinito na ilusória busca de locais com abundância de alimentos. No cimo da árvore, compõe o voo para ir mais longe.
Já não há cerejas no vale e eu não sei onde ouvir os pássaros. Fazem-me faltas as perfeitas melodias sem hora marcada. A beleza das penas. Os silêncios alegres. Mas sei que vou continuar a ouvi-los. Porque “os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas.”
Em cima do telhado, restolhavam trinados amarelos. A manhã trauteava réstias de Sol, com uns brincos de oiro pendurados nas orelhas. Os rubis refulgiam vermelhos incendiados. E ele esvoaçava de uma telha para a outra. Pulando como quem expulsa medos. Para, abundantemente, conservar a paixão. E cantava. O pássaro desafiava regozijos alegres. De uma telha para a outra. Sem ousar saltar para o outro lado da estrada. E olhava. De seguida, cantava. Ornatos musicais. Andamentos em sol maior.
Por baixo do telhado, um som. Música tónica e robusta. Martelo ritmado no aconchego das tábuas. Uma serra serrava. Ia e vinha, num vaivém semeado. E voltava ao princípio. Corrigindo imperfeições. Ouvia-se o gesto que martelava descontentamentos. Queixumes de satisafeitas canseiras. Da boca escorriam suores admirados. E as mãos amaciavam obras liquefeitas. Pressentia-se o ardor dos dedos que lavravam a madeira, na recusa da cola. Bebia-se o consolo de evitar os pregos. O carpinteiro sabia. E não queria rachaduras que fragilizassem a construção. Persistia. Na roda da água. Que bebia por baixo do telhado. No silêncio que brilhava quando o carrossel girava. E o pássaro gorjeava que o homem parara. Simplesmente contemplava.
Do outro lado da rua, um pássaro voava... Edificou um ninho no beiral inclinado da confiança e adormeceu a ler o poema. Então, cantou.
Sonhei na quietude do meu sono. Acendi a luz, para o olhar nos olhos. Envolvê-lo nos meus braços desnudados. Ri. Tanto. Tanto. Muito. As gargalhadas rebolaram pelo chão do desfalecimento, redizendo estouros da insana ambição. Naquele instante, percebi que as minhas mãos desapareceram… e arrependi-me de ter acordado sem vontade de acordar. Só o queria ter… Abraçar os seus pés e caminhar neles.
Agora, apenas me recordo de metade. De quase pouco. Lembro-me de tudo. Tanto. Tanto. Muito. E no leito do meu rio, as ondas desarranjam-se em soluços remexidos. Aqui. Lá longe. Na claridade do Céu. Azul.
Que ave foi aquela... cúmplice, carinhosa, companheira, espontânea... que adoçado trinado motivou a cobiça dos ventos e afrontou os trovões? Que ave foi aquela que não ultimou, no seu sono, o sonho que esvoaçou? Aquela foi a ave que o meu sono acordou… e que em tempos discursou sobre a fragilidade das multidões.Tudo passa.Tudo passa. Tudo passa... Aquela foi a ave que o meu ombro serenou..
Sempre que passarinho, oiço pardais, tentilhões, poupas e muitos piscos. Pássaros. Muitos pássaros no olival. Também no medronhal. E lá em baixo, junto ao sobreiro inclinado pela vida. Foi o vento que o encolheu. Passarinhar sabe a mistério. Tem segredos e enredos de criança. Uma correria na direcção do ouro. Do paraíso perdido. Por isso, passarinhar é demanda. Trajecto de vida. Atalhos feitos e desfeitos no limite da saudade.
Sempre que passarinho, descubro o charco. Largo e arredondado. Com muito junco e pedaços de areia enxovalhada pela lama. Com o junco, fazia cadeiras. Muito pequeninas. Para a boneca. Na areia, os pássaros matavam a sede. Bebiam descansos de dias a passarinhar. Sem saber andar. Antes saltitar. A passarada caía no logro. Na rede ágil que puxava, camuflada numa cabana fraudulenta e engendrada com canas e matos roubados às margens do pântano. Enredavam-se no visco peganhento e nojento que lhes capturava os pés e os proibia de passarinhar. Armadilhas manhosas e dolosas, desleais, mas inculpadas. Era a menina a passarinhar. Uma menina que não sabia que Deus ensinou os pássaros a voar. Por isso, lhes deu asas mescladas de galhardia, audácia e muita gentileza. Que eles exibem sempre que voluteiam no ar. E ensinou-os a cantar. Cada um com um repertório singular. E os pássaros exibem um sublime refinamento vocal. A voz, o volume e a vibração garantem a sua sobrevivência. E encantam as manhãs. Os pássaros passarinham pelo céu, porque gostam de vadiar. E, do alto, poder pipilar que para voar não é precisa a chave da gaiola. Na infância, aprendi a passarinhar. Mas já me esqueci.
A disposição para passarinhar ficou. A minha mãe, sempre que branqueava o chão da cozinha, expulsava-me dali. Zangava-se com estorvos à limpeza. E não compreendia a razão do meu passarinhar. E eu não gostava nada que ela me acusasse de passarinhar. O canário, na gaiola, abstraía-se da polémica e eu há muito que não acorrentava pássaros. Eles é que me seduziam. Nem queria! Foi coisa de brincar. Se ela não aprovava que eu andasse de um lado para o outro a esborratar-lhe os mosaicos, deveria dizê-lo. Sem invocar os passarinhos.
Tenho o direito a passarinhar. Quando passarinho, abre-se o horizonte sem arame farpado. Ali, onde pára a liberdade de ver o que quero olhar. De fitar a luz que me circunda e agasalhar-me no ninho da minha inculpabilidade estouvada. Vou, porque amanhã é sábado, passarinhar até à Dona Perpétua por causa do arroz-doce. Com sabor a canela e polvilhado com gargalhadas a passarinhar por aí.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]