A porta encerrou-se naintransigência da fechadura. Na simetria do recolhimento, a passagem imobilizou-se no pensar… no anseio de voar. De ser saída para passos de arestas arredondadas. Sem receio do frio que estava na rua…
Na ombreira deste sonhar, a porta depressa entendeu que os pardais não têm a chave do telhado… sendo pássaro na gaiola da casa…
Sonhei na quietude do meu sono. Acendi a luz, para o olhar nos olhos. Envolvê-lo nos meus braços desnudados. Ri. Tanto. Tanto. Muito. As gargalhadas rebolaram pelo chão do desfalecimento, redizendo estouros da insana ambição. Naquele instante, percebi que as minhas mãos desapareceram… e arrependi-me de ter acordado sem vontade de acordar. Só o queria ter… Abraçar os seus pés e caminhar neles.
Agora, apenas me recordo de metade. De quase pouco. Lembro-me de tudo. Tanto. Tanto. Muito. E no leito do meu rio, as ondas desarranjam-se em soluços remexidos. Aqui. Lá longe. Na claridade do Céu. Azul.
Que ave foi aquela... cúmplice, carinhosa, companheira, espontânea... que adoçado trinado motivou a cobiça dos ventos e afrontou os trovões? Que ave foi aquela que não ultimou, no seu sono, o sonho que esvoaçou? Aquela foi a ave que o meu sono acordou… e que em tempos discursou sobre a fragilidade das multidões.Tudo passa.Tudo passa. Tudo passa... Aquela foi a ave que o meu ombro serenou..
ardim primeiro. Paraíso perdido. Desobediência infernal. Se é verdade que Adão e Eva foram expulsos do paraíso, eu não fui do meu. Se o deles é mítico, o meu é real. Hoje, ambos estão igualados na desgraça. Ambos sucumbiram aos pés de interesses privados, também públicos. O meu éden deve ter dado abrigo a condomínios de luxo, a auto-estradas desenhadas no interesse de alguém. Resta-me a memória.
O meu jardim não obedeceu a artes de jardinagem. Não cedeu a modas vindas do mundo. A sua beleza advém-lhe da autenticidade. Da irregularidade das formas, da multiplicidade de vidas, de cheiros e de sabores. O meu horto não sabe a maçã. Celebra as cerejas, as ginjas, os figos e as ameixas. Os pêssegos. E as nêsperas. Tudo com muitas mimosas amarelas.
Não foi complicado esquecer a Boneca. A de papelão, com olhos escancarados e pintas a fingir de nariz. Apesar de no livro das minhas recordações lhe ter dedicado uma página, poucas vezes a relembro. Tenho pena do vestido com florinhas cor-de-rosa que a minha mãe costurou para ela. Só dele.
Eu tinha árvores e frutos. E os pássaros que gorjeavam no medronhal. E o sobreiro. Um tronco enorme, gordo. As raízes não cabiam na terra, por isso espreguiçavam-se à superfície. E tanto que eu gostava de me sentar nelas… E comia boletas. Bolota é termo de dicionário. Eu gostava das boletas com sabor a terra. À falta de castanheiros, a competição não existia. E eu cantava e dizia palavras com asas nas sílabas. E frutos silvestres nas consoantes. As vogais cheiram a figos. A pontuação é escassa, ficam as exclamações construídas de prazer, de êxtase, de conivência, aclamações proferidas a cada instante.
O tempo de calor amarelara quase tudo. O verde escasseava, a escola ficara para trás. Em Outubro tudo recomeçaria. A rotina do regresso cumprir-se-ia sem solavancos. Então, renovar-se-á a saga do óleo de fígado de bacalhau. As provas em folha de 25 linhas com dobra à esquerda. As orações meia hora antes de terminar a aula. As orelhas de burro. A humilhação pública. As minhas, as que me ajudam a percepcionar o mundo, nunca foram constrangidas. Não, não experimentei próteses de imbecilidades feitas em cartão. Asnices pedagógicas à janela. Eu lá me ia livrando das ditas. A Rita é que não. Teve azar. Foi apanhada de surpresa numa linha de comboio, a do Norte. Ela que nunca tinha usado tal meio de transporte!
Perguntei à Rita se já tinha estado em cima de uma figueira. Devolveu-me um não imbuído de insultos. Ousou um que parvoíce. Olhei para ela e, sem que me ouvisse, exclamei um que pena, coitada. Infeliz rapariga que só sabe o quinto andar de um imóvel da Praça do Brasil. Encurralada na gaveta de uma cómoda com azulejos verdes. Um dia, Rita, vais comigo. E comerás figos e levar-te-ei ao medronhal. Ela concordou.
A Rita bateu à minha porta saída de um Ford Anglia. Não me lembro se super, se deluxe. Um anglia azul-claro petulante. Calçava uns sapatos pretos de verniz. Com uma fivela, creio que preta também. Cabelos anelados, livres. Um gancho vermelho aprisionava-lhe a franja. O vestido era branco. De piquê, soube depois. Nas mangas, em forma de balão, corria o escarlate da fita grega que as completava. Uma fitinha ondulante que se vendia a metro. Grega? Desconheço o móbil. Tive a sensação que aquele vestido acabara de sair do guarda-vestidos das festas de família. Cheirava a naftalina. Eu também tinha um assim e uns sapatos castanhos, de verniz. A Rita estava ridiculamente trajada. Descomposta. Ela vestia hábitos urbanos e era uma menina.
- Rita, que vestido magnífico! Que lindo! Não o podes sujar… Vou ter que te emprestar roupa. E umas sandálias…
Ela vestiu. E ficou mais bonita. Mais autêntica. A Rita devolveu-me um sorriso transparente.
A meio da tarde, já cansadas das histórias da professora Celeste, que também tinha um ford anglia, decidimos ir para a rua. Vamos, vou mostrar-te as minhas árvores.
A figueira de figos moscatéis tinha um tronco generoso. Foi fácil convencê-la a trepar comigo. Subimos até ao tronco onde me costumava sentar. Uma tábua, que eu colocara há tempos, oferecia-nos algum conforto. A Rita dizia que dali chegava ao céu. Eu concordei. Nós, os figos, os pássaros e o céu. Repartimos gargalhadas. Sorrisos. Sustos, sempre o ramo se perturbava com as nossas palavras. Lágrimas e figos que disputávamos com pardais, estorninhos e tordos. Esqueciam-se completamente de nós. Ignoravam-nos e escolhiam os figos mais maduros. Debicavam um e outro e voavam. Regressavam mais tarde ou no dia seguinte. E nós comíamos esses figos provados por bicos sabedores. São os melhores, comentava eu.
Os olhos da Rita acumulavam deslumbramentos. Encantos de quem se transforma em personagem de livros para crianças. E assegurava-me que aqueles figos sabiam a figos. Prometi-lhe que, no dia seguinte, comeria figos roxos, com lágrimas de mel. Além, revelei com o dedo.
Apesar do papa-figos, ave de cores muito vivas, estar em vias de extinção, a Rita espreitou por entre as folhas da figueira. Sorriu e disse que sim.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]