Hoje, vou revelar-te um segredo. Não pretendo que cantes. Que rias ou que me digas que sabes onde fica o desejo. Porque não sabes! Tu nunca ouviste o rio a cantar. Nem te atreveste a socorrer a gaivota deitada na areia. No rio havia um bote. E no bote, umas mãos que me abrigavam dos ventos e das marés. Sobravam as gargalhadas que trepavam pela duna. Um sorriso que me vestia quando pulava para terra. Não sabias. Agora, não quero que o vulgarizes. Ninguém compreenderá que o rio corre ao contrário e que se derruba na foz como a mesma voracidade com que o tempo me rouba os momentos. Porque desconheces que eu sou água e ignoras o que é partir e ficar. A olhar o rio…
Nos dias cinzentos que correm enfraquecidos, na dor translúcida que me trespassa, na indecisão fina que me afoga, na esperança caída no chão de terra batida, queria amansar a dor. Remover a incerteza e reavivar a cor do sol. Colorir os dias, a lua e a noite. Disputar o brilho das estrelas e rir com elas. Queria ser alma, ser gente e velejar até lá. Reaver a casa grande pendurada na areia com janelas prenhes de luz. E as riscas azuis que se rebolavam no calor branco que cobria as paredes. Queria os mistérios que permanecem espalhados na duna. As toadas dos passos. O restolho das vozes. Queria os ninhos de sonhos que vogam pelo azul do rio. As marés, as ondas e o bote. O aroma da canela naufragado nestes dias frios e cinzentos.
Se agora fosse natal, a minha escuridão desfazia-se prolongadamente num abraço profundo. Das janelas destes dias cansados e frios, trepava até ao céu. Fundeava o tempo e privava-o das estrelas que ele me roubou. No Natal.
Hoje, vou oferecer-te o meu suor gota a gota, para te lamber a pele. E ver o Sol. A Lua e as refulgentes estrelas num abraço profundo. Então, tudo fará sentido. Amarramos o tempo ao chão e inauguramos uma tempestade passageira. E bailamos os dois ao ritmo da fortuna enfileirada numa doce melopeia.
Agora, não me digas mais nada. Estou ocupada a ouvir a chuva a sorrir.
Sonhei na quietude do meu sono. Acendi a luz, para o olhar nos olhos. Envolvê-lo nos meus braços desnudados. Ri. Tanto. Tanto. Muito. As gargalhadas rebolaram pelo chão do desfalecimento, redizendo estouros da insana ambição. Naquele instante, percebi que as minhas mãos desapareceram… e arrependi-me de ter acordado sem vontade de acordar. Só o queria ter… Abraçar os seus pés e caminhar neles.
Agora, apenas me recordo de metade. De quase pouco. Lembro-me de tudo. Tanto. Tanto. Muito. E no leito do meu rio, as ondas desarranjam-se em soluços remexidos. Aqui. Lá longe. Na claridade do Céu. Azul.
Que ave foi aquela... cúmplice, carinhosa, companheira, espontânea... que adoçado trinado motivou a cobiça dos ventos e afrontou os trovões? Que ave foi aquela que não ultimou, no seu sono, o sonho que esvoaçou? Aquela foi a ave que o meu sono acordou… e que em tempos discursou sobre a fragilidade das multidões.Tudo passa.Tudo passa. Tudo passa... Aquela foi a ave que o meu ombro serenou..
Ontem, vi carrinhos com bebés conduzidos pelos pais. E crianças ao colo dos pais. E pais às cambalhotas com os filhos na relva. Alguns faziam corridas de bicicleta. Outros salpicavam-se na água que se fingia cascata na cidade. Com afectos, despidos de preconceitos idiotas. E as mães? Perguntei. Estas crianças não têm mães? Insisti sorrindo, já que elas andavam por ali, e controlavam tudo, ainda grávidas de orgulho. Parece que só têm pai! Acrescentei. A resposta saiu com um sorriso transparente e fresco. Hoje é sábado. É dia do pai... E ria. Não. Os pais têm que sê-lo a tempo inteiro. Caso contrário não são pais ou não sabem ou não querem. E nem calculam o que perdem.
Um mal estúpido e feiíssimo impede-me de ter pai ao sábado. E nos dias todos. E tenho saudades… Porque hoje é domingo. E ao domingo eu tinha sempre o meu pai.
Hoje é domingo e recebi este vídeo de um amigo. E neste mundo admirável, uma criança é sempre um prazer inesperado.
Contava e ria-se. Uma história gasta no tempo e recontada quase sempre ao serão. Tinha sido o único que ousara entrar em territórios que não eram os seus. Perigosos. Um corpo de serpente, negro, acinzentado. A boca de lábios grossos escondia fileiras de dentes esfomeados e insaciáveis. Um safio quase congro escondia-se na fenda rochosa que ele descobria. O medo cedia à adrenalina gerada pelo desafio. Os outros fugiram. E ria-se. Os seus olhos azuis sorriam, emanavam um brilho com gosto a vitória. Enfiou o braço no buraco. Assim, às escuras. Apostava na coragem, na determinação. Na insensatez, também. Quando se é jovem o sangue corre com celeridade. O bicho estava lá e mordeu-lhe. Defendeu-se. Danado! Mas apanhei-o. Um congro! Enorme. Feroz. Garantia que não sabia como ainda tinha os dedos todos ou mesmo a mão. Quem sabe o braço. Mas tinha!A descrição hiperbolizava-se num tom quase épico. Nunca lhe percebi a dimensão. Nem me interessa. Um safio com vontade de ser congro ou um congro que um dia foi safio... Nem me interessa.
E remava. Num rio azul. Num céu azul. Com uns olhos azuis. Sorriu de novo quando avistou a praia. O bote entrou pela areia. Ele saltou para a água. Colocou o balde em terra. Uma terra segura que substituíra o mar. Depois deu-me a mão.
- Salta.
E eu saltei.
- Lava as feridas...
E eu lavei. Mergulhei na água azul de um rio azul. Com sabor a mar. Como se fosse uma grandiosa pia baptismal. De novo me baptizei. E renasci do alto, pela água purificadora do meu rio. Que não é Jordão, já que não havia arrependimento em mim. O sal roçava as feridas e roubava-lhes o sangue. Cicatrizava-as. O meu pai empurrou o bote para a água. Fixou-o com a fateixa e deixou-o ali. Ancorado! Agarrado a uma âncora. Para que não se desorientasse. Para que não fosse sozinho à pesca. E o bote permaneceu ali ao sabor das vontades do rio.
- Deve haver lume.
- Para quê?
- Para os robalos.
- Pois é!
E foi! Assados em lume ateado pela minha avó...
Hoje, na minha cabeça, há alguns brinquedos vencidos. Bonecas, poucas. Uma máquina de costura e um bote que ninguém salvou. Só porque não podiam, presumo. Nem sempre as âncoras são panaceia para males incuráveis.
Hoje, na minha cabeça, tenho um bote que cessou de navegar. Que naufragou. E um pai que foi com ele. Ambos sabiam a rio. Um rio que se enleou com o mar. E o cerúleo céu pintou-se com ébano. Um desenho sonoro embaciado. Uma fotografia com sabor a naufrágio.
E no céu azul repetiu-se um brado carregado de profunda mágoa.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]