pelo teatro - sem pastéis de nata
- Professora, vamos comprar pastéis de nata?
- Não, vamos ao teatro.
- Oooooooooooooooooooooohhhhhhhhhh!
Foi um lamento alongado. O pastel de nata, com canela e açúcar, espalhou goludice pelo autocarro até ao banco de trás. Um coro de tragédia grega. A verdade, é que também eu comeria um ou dois... Com um incontestável café. São magníficos os pastéis de Belém. Mas fomos ao teatro.
Nada é como era dantes. Nem os pastéis. A perda artesanal, diz-se industrialização. Há quem lhe chame progresso. Talvez seja. O progresso define-se nos avanços, não nos recuos. Afirma-se na prosperidade e cala misérias. Ninguém nega as marca de progresso pinceladas na rádio, na televisão, no automóvel, no telefone e no computador.
Reconhecemos a importância da vassoura, porém preferimos o aspirador. Compreendemos que o frigorífico tenha substituído a salgadeira onde a minha avó enfiava o pernil do porco, morto no Natal, e que saía de lá presunto. Aceitamos a ida a lua como um feito notável para a humanidade. Coisas admiráveis. Assumimos a cesariana como natural ao invés do parto conforme à índole humana, conjugado no verbo parir. Inventámos eufemismos como modos de bem dizer. É progresso. Renegamos a história por ausência de progresso e inventamos outra, moderna, actual. Ignoram-se ambas. É progresso. Somos inteligentes, descobrimos um mundo virtual com gigantescos centros comerciais. Com salas de cinema e tudo. Pode-se namorar, pode-se amar, pode-se fumar e comer pipocas. É progresso.
Entusiasmamo-nos com as passagens de moda, particularmente com os modelos. Falo de roupa! É progresso. O corpinho destapado é sinal de avanço. O desenvolvimento também está no tamanho da vestimenta. Por cá parece que a tanga está no topo das preferências. Desculpem, mas não tenho corpinho para tal, é mesmo o fato de banho.
Sou do tempo em que, na escola, se chumbava. Oficialmente reprovava-se. Na gíria estudantil a coisa ruim era uma raposa. Analogias cinegéticas. Agora transita-se... Um neologismo inchado de progresso.
Rejubilamos com as novas tecnologias que curam doenças e prolongam a vida. Morremos velhos e consumidos por tanto viver. Banalizamos as notícias que dão conta do aumento da esperança média de vida. Diferente para homens e mulheres. Acho bem! Sou pela diferença.
Comemos até mais não poder. Há de tudo para todos os gostos. Outrora, havia gosto, o comer é que escasseava. Por isso somos gordos e anafados. Temos a mesa e a sobremesa. E as bolachas e as pizas. Os refrigerantes de todas as cores e paladares. Com aloé vera. Uma praga nacional que ataca iogurtes, detergentes, bebidas, perfumes, cosmética... em simultâneo. Planta miraculosa.
Regozijamo-nos com o nível de desenvolvimento conseguido. Progredimos. Atrás do Brunei ou dos Barbados, mas à frente do Chipre. Lindo é ver a longevidade a aumentar!
A tragédia publica-se no jornal. Com o coro a anunciar e a gerar visões e destruição. O drama representa-se na transformação do corpo. Instala-se o medo. E a imagem de um pastel de nata ganha forma, cor, sabor e cheiro a canela.
E o jornal aponta o dedo da desgraça. A vida sedentária, os excessos alimentares e a diabetes entra em cena... o coro faz-se ouvir... é uma doença crónica que atinge quase um milhão de pessoas. Nas bancadas da arena o silêncio é absoluto. A personagem movimenta-se... um rumor confuso de muitas vozes mescladas com ruídos vários denuncia o assombro... a diabetes chega à boca de cena... o bruaá persiste. Todos estão incrédulos.
Vou tomar um café... sem açúcar! A tragédia é sempre grega?
Nota - Os alunos não comeram pastéis de nata, facto que não os impediu de assistir à representação de Falar Verdade a Mentir de Almeida Garrett pela companhia O Sonho. Estiveram magníficos no comportamento, generosos nos aplausos, francos nas gargalhadas. Foi um gosto!
(imagem de mare nostrum)