Pela boca morre o peixe. Pois morre e ainda bem. Gosto dele e não o comeria vivo. Agora que é uma chatice é. Não havia necessidade de um rifão popular para adubar a morte. Já basta saber que ela existe. E chega com eufemismos diletantes, por isso irritantes. Óbito, falecimento e término da vida não é tudo o mesmo? Ir para o céu é uma expressão danada. Então a gente morre e inicia uma viagem destas? É que o céu é longe. Se as agências funerárias já cobram uma quantia elevadasó para o cemitério local, imagine-se para o céu. Bater a bota não gosto mesmo. Porque impossível, porque grotesca. Ninguém se lembra de comemorar a sua morte com uma batidinha de botas. A morte é tão lerda que não merece primores vocabulares. Tem o que merece. Cá para mim, até podia ser pior. Há que enxovalhá-la para que tenha vergonha naquela fuça hedionda.
O peixe até pode esticar o pernil que é como quem diz a barbatana. Ninguém o manda ser guloso e engolir o anzol. Coitado! Foi assim que o compuseram. Só acata as disposições da natureza. Por isso é peixe e não outro bicho qualquer. A morte também, só que mais horrenda. Prefiro a boca do peixe. Grande ou pequena tanto faz, desde que peixe. Não se pense que a humana boca não é dada a devorar ardis alimentares.
Terrível, a boca da gente. E é por estas e por outras que ando para aqui preocupada com a minha. Só porque não quero morrer com ela aberta. Não questiono se vou para o Céu ou para o Inferno. A minha metafísica é tão terrena! Quem cá ficar que decida para onde me quer enviar. E é por causa da minha boca que tenho a cabeça, pelos vistos o corpo, cheio de triglicerídeos. Uma palavra cuidada para nomear a destrambelhada da gordura que me circula no sangue.
De boca bem fechada, pasmo-me com a coisa. Saturadas e insaturadas. Mono e poli. Ómega 3 e ómega 6. Origem vegetal e origem animal. Enfim, uma parafernália de prefixos e sufixos. Gorduras boas e gorduras más. E eu sei escolher de palavras difíceis e conceitos tumultuosos e nocivos para o meu coração? Por isso, vou aboli-los do meu dicionário. Não as quero, não.
Prefiro a prelecção clara da médica que escreveu e escreveu numa folha de papel com muitas linhas e depois disse e disse. Também explicou. E murchou a minha vontade. Tudo aceitável. Tudo exequível. Mas limitar a minha gula queijeira ao despretensioso queijinho fresco é que não lhe perdoo. E os amanteigados, meu Deus?
Porque pela boca morre o peixe, até vou cumprir a deliberação. Contrariada. Mas vou. Pelo menos vou tentar. Pelo coração. Gosto de me admirar e de me desiludir. De amar e de sentir. De chorar e de rir. Gargalhar com lágrimas. Preciso do coração, não é?
O bote galgava metros de tranquila baixa-mar. O vento falava em voz baixa. Acariciava-nos os corpos. Não nos importávamos com a sua direcção, nem com a intenção, Aquele era bem intencionado. Somente uma brisa que voava por ali. Baixinho. No meio de tudo. No meio do nada. No silêncio do marulhar das ondas. Pequeninas. No meio do mundo pintado de azul. Com a maré baixa podiam-se ver os cabeços de areia e adivinhar os olhos de água. E ele explicava. Mostrava que conhecia o rio. Que o sabia de cor. Não lhe guardava rancor pelas traições experimentadas ao longo da vida. Ao sabor das marés.
- É acolá.
- Onde?
- Naquele banco de areia.
- Banco?
- Não sabes nada!
- Sei!
O rio estava adormecido. As águas tinham ido para o outro lado, talvez à procura de quem soubesse remar. O rio mostrava-se do avesso. Orgulhosamente despido de preconceitos. Pavimentos de areia. Chãos de lama. Poças de água. Lá dentro os peixes que, desatentos, não compreenderam o fluxo da maré. Permaneciam ali na expectativa que ela voltasse. Sabiam que voltaria. Ciclicamente. Um ciclo que dependia da Lua, do Sol e da Terra. Marés vivas e marés mortas. Eles sabiam. Preferiam as vivas. Tinham mais água para nadar.
- Despacha-te!
- Porquê?
- A maré vai encher…
- Eu sei!
Não sabia andar naquelas coisas. As sapatilhas tolhiam-me os movimentos. Usurpavam a minha autonomia de aprendiz de mareante. Ancoravam-me os pés. Ele corria de poça em poça. As suas mãos ágeis apanhavam peixes tramados pelo sobe e desce das águas. Um. E depois mais outro. As suas mãos sorriam de contentamento. As suas mãos arrastavam saber. E o prazer que ele tinha! Dei por mim a pensar que tinha sido intenção deliberada do rio. Deixar-se pescar por dentro. Por ele. Por isso, vazou.
- Mais um!
- Um quê?
- Um robalo!
- Eu sei!
As minhas pernas não o acompanhavam. Ele saltava de peixe em peixe. Transpunha todos os obstáculos gizados nas carapaças vazias dos berbigões e dos canivetes. Há quem lhe chame longueirão, mas ele não gostava. É, presumivelmente, o marisco que mais gosto a mar tem. Vive enterrado na vertical. Um aprumo de vidas sepultadas na areia. Costumávamos apanhá-los com sal, à mão. Depois, abriam-se, sobre uma chapa de metal, ao lume da rua. Comiam-se regados com sumo de limão. Dos limoeiros do quintal.E a cozinha cheirava e sabia a rio. E ele continuava a regozijar-se.
- Mais um!
- Um quê?
- Um xarroco!
- Eu sei!
E lá vinha a história do costume. Que o xarroco era um peixe feio. Predador medonho. Que apesar da "cara de poucos amigos" era fantástico. De todas as maneiras. Frito com arroz de tomate. De caldeirada também. Bicho danado, que se escondia na areia à espera que as presas passassem ao seu alcance. Comia-as num ápice. Também, com uma bocarra daquelas!
- Mais um!
- Um quê?
- Um choco!
- Eu sei!
Mais não! Antecipei-me. Pedi-lhe que explicasse tudo no dia seguinte. Já estava cansada de tanta cultura piscícola. E ele avançava como peixe na água…
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]