Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. [...] Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.
Em sonho lá vou de fugida, Tão longe daqui, tão longe. É triste viver tendo a vida, Tão longe daqui, tão longe. Mais triste será quem não sofre, Do amor a prisão sem grades. No meu coração há um cofre, Com joias que são saudades. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar. Ó bem que me dá mil cuidados, Tão longe daqui, tão longe. A lua me leva recados, Tão longe daqui, tão longe. Quem me dera este céu adiante, Correndo veloz no vento. Irás a chegar num instante, Onde está o meu pensamento. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar, Tenho o meu amor para além do mar.
Em cima do telhado, restolhavam trinados amarelos. A manhã trauteava réstias de Sol, com uns brincos de oiro pendurados nas orelhas. Os rubis refulgiam vermelhos incendiados. E ele esvoaçava de uma telha para a outra. Pulando como quem expulsa medos. Para, abundantemente, conservar a paixão. E cantava. O pássaro desafiava regozijos alegres. De uma telha para a outra. Sem ousar saltar para o outro lado da estrada. E olhava. De seguida, cantava. Ornatos musicais. Andamentos em sol maior.
Por baixo do telhado, um som. Música tónica e robusta. Martelo ritmado no aconchego das tábuas. Uma serra serrava. Ia e vinha, num vaivém semeado. E voltava ao princípio. Corrigindo imperfeições. Ouvia-se o gesto que martelava descontentamentos. Queixumes de satisafeitas canseiras. Da boca escorriam suores admirados. E as mãos amaciavam obras liquefeitas. Pressentia-se o ardor dos dedos que lavravam a madeira, na recusa da cola. Bebia-se o consolo de evitar os pregos. O carpinteiro sabia. E não queria rachaduras que fragilizassem a construção. Persistia. Na roda da água. Que bebia por baixo do telhado. No silêncio que brilhava quando o carrossel girava. E o pássaro gorjeava que o homem parara. Simplesmente contemplava.
Do outro lado da rua, um pássaro voava... Edificou um ninho no beiral inclinado da confiança e adormeceu a ler o poema. Então, cantou.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]