A tarde desabava pela estrada. A desafiar as cálidas horas que tocavam nos sinos da igreja. De longe chegavam os acordes que tateavam a resistência do tempo. A força do aplauso murchava à medida que o eco desmaiava pela ladeira.
Apenas uma flor se encostava à parede no orgulho da cor. E de tanto a olhar pensei que a ouvia.
Os sonhos murcham, mas não podem ser arrancados pela raiz. E de vez enquanto chove. Uma chuva serena e doce. Que os alimenta e os veste com farrapos de seda.
Do meu país entrevê-se o mar. Mas o mar já perdeu a paciência. Esqueceu as descobertas. Cancelou as invenções. O mar do meu país está triste. Deixou de sorrir. Desaprendeu a letra da canção. O meu país já não sabe aparelhar os barcos. E ignora quem está além-mar, porque estranha o que acontece aqui. O mar está confuso. O azul-marinho é já azul-turvo. Da cor da decepção.
Foi uma terra de gemidos sofridos. Contidos e controlados. Cristalizados ao longo dos anos. Um dia, acordou bem cedinho e fez-se à água. Pegou em armas que não disparou. Com uma flor edificou um jardim que o sol iluminou. O Sol brilhou no céu. As raízes absorveram a água. As folhas absorveram o dióxido de carbono e a luz do Sol. As folhas transformaram a luz solar em açúcares e as flores cresceram. Briosas. Benfeitoras na alforria de oxigénio para o ar. Admiráveis. A Lua foi para a cama. Fechou os quartos. Apagou a luz, adormeceu e acordou cheia de vontade. Só que o Sol ergueu-se primeiro.
O meu país imitou a estrela. Espelhou-se nela. E pediu ao planeta que fizesse as marés. E ele fez. Para cá e para lá. Para cima e para baixo. Movimentos ciclicamente repetidos. A notícia galgou o mundo. Uma preia-mar de comoções e canções. A flor desabrochava. O meu país deu risadas de Abril.
Depois vieram rumores vindos daí. O país cumpriu-os. Aliou-se à força dos outros, persuadido que a pujança era contagiosa. Só pelo contacto. E também pelas vozes que proferiam discursos arranjados e encomendados. Erro tamanho! E o meu país dobrou a melancolia. A maré arrastou-o para a praia. O barco já não navegava. Ficou por ali a ver os outros partir e florir.
Ele chegou e tudo se transfigurou. O meu país tornou a sorrir. E pintou-se de verde e vermelho. Com pedacinhos de amarelo. E reaprendeu a canção. Esqueceu que uma vez a praia foi de lágrimas. Dúvidas. Medos. Alguns segredos. E partiu seguro da vitória. Não se recordando da História.
Às vezes, o meu país suspende o canto. As lágrimas desejam o mar. Às vezes, o meu país não sabe onde está o mar. Ignora que Adamastor chorou. O pobre amou e ninguém notou. A gente do meu país derrama lágrimas salgadas com o sal do mar que é seu. E quer rir. O meu país assumiu as gargalhadas de Junho.
Ninguém reparou que o mar se cumpria. Que D. Sebastião não voltou. Porque o nevoeiro não o mostrou. Porque é um mito do tamanho de um país e, apesar de prodígio, não driblou o inimigo. Foi uma desgraça. O sofrimento e a esperança sustentaram a aflição do meu país que cantou em uníssono árias de vitória. Uma terra que esqueceu os oponentes. E nem reparou que os adjuvantes eram de papel. E o meu país está triste. Chora a veleidade de ter dissipado a espessa névoa. Tão triste e tão choroso! O meu país silenciou-se na derrota. As cores já debotam à janela. E ele foi-se embora. E acordam sorrisos amarelos.
E agora que os heróis não se cumpriram. Que as vitórias foram balelas. Que a euforiamirrou. O meu país vai contemplar o mar?
O meu país permanece a chorar. Com fundamento. E já tenho saudade do mar de pátrias lágrimas sem razão…
Por que motivo a Europa foge a sete pés sempre que nos aproximamos dela? Eu cá não arranjo resposta. Não sei não!
E veio-me à memória a Península Ibérica a vogar pelo mar n' A Jangada de Pedra. Saramago deve ter-se enganado. A Espanha é que não. O melhor é mantermo-nos quietinhos. Acomodados à nossa quixotesca e afadigada periferia e de mão aberta para os fundos. O mar e o sol ficarão por nossa conta.
A mulher entrou no autocarro à pressa. Nos gestos altivos via-se a determinação de não ficar para trás. Nos olhos desvendava decisões acertadas na véspera. Talvez ao jantar. Eventualmente no silêncio da noite. Na cama, ela completara o rol de afazeres. Um conjunto de coisas descritas e enumeradas. Uma relação de actos que não cabe no dia. Por isso, entra noite dentro. Chega ao quarto. À cama onde se aconchega em lençóis em puro algodão liso. De originalidade e qualidade comprovadas em etiquetas formais. Todos os artigos são alvo de rigorosos testes no nosso laboratório, leu no catálogo. Por isso, os comprou. Uma lista rabiscada que cumprirá milimetricamente. Sempre com urgência. Sempre com ideias fixas.
Uma saia evasé na base tapava-lhe os joelhos. Estampado às flores a anunciar o regresso do Verão. E a sua feminilidade. Um padrão actual desenhava umas floritas brancas num fundo cinzento-escuro. Uma camiseta branca, generosa no decote, mostrava um colar de brancas esferas armadilhadas numa corrente de elos prateados. Os pés despiam-se numas chinelas brancas. Uma tira larga resguardava os dedos com unhas vermelhas. Uns atilhos mais finos envolviam-se com os tornozelos. Como a Thunbergia alata da minha avó. Ela não conhecia nome tão erudito. Zelava com muito carinho a sua amarelinha. De tal modo que a trepadeira de magníficas flores amarelas pensava estar acima do bem e do mal. Todavia, todas as manhãs percebia que era escassamente uma menina vulgar. Amarela e Vaidosa. Embora a avó a protegesse com caretas de jardineiro.
Cabelos curtos com as pontas alongadas. Assimétricas. Louro-escuro. Hoje, as mulheres pintam o cabelo de amarelo. Ou de vermelho. Um destes dias não há cabelos castanhos nesta terra. Outrora havia. A típica mulher baixa, morena, cabelos pretos ou castanhos, tradicional não se sentia ali. Aquela ostentava bagatelas de modernidade globalizante. Talvez 45 ou 50 anos. Bonita, considerei.
Entrou e sentou-se. A mala que transportava ao ombro aninhou-se no colo. Enorme. Branca em harmonia com as sandálias. Com fecho. Com bolsos. Com correntes. Com um lenço atado a uma das alças. Um lenço acanhado. Engelhado e a fingir de bandeira. Por desfraldar. E eu fiquei a perceber como se amava com o coração. Aquele lenço enfezado não era uma bandeira. Não podia ser.
Também as janelas expunham nervosas bandeiras. Algumas envergonhadas, já que misturadas com roupa presa no estendal. Outras desencorajadas, já que embrulhadas com cortinados descorados. E mais umas disputavam a terra de recipientes floreados. Pálidas e cansadas. A mala branca permanecia em silêncio sobre os joelhos da mulher. O lenço também.
Tempo houve que Portugal se gritava com lágrimas de chorar. Num sossego contido e orientado por gente que se orgulhava sozinha. Era um vocábulo sem amigos. Desconsolado. Isolado. Paciente. Tinha bocas silenciadas mesmo quando entoavam hinos de fé. Tinha mãos duras e cerradas mesmo quando exaltavam a bandeira.
Um dia a bandeira desfraldou-se. Cobriu-se de verde e vermelho. Encontrou amigos e disse que sim. Orgulhosa. Vaidosa. Afirmou-se nação. Língua. Povo. País. Símbolo.
A mulher deixa o autocarro. Com a mala branca e com um lenço amarrado a fazer de estandarte.
A mim acodem devaneios cabisbaixos. Que ao ar livre, a bandeira iça-se ao nascer do sol e arria-se ao pôr-do-sol. Que deve ser erguida com determinação e descida com cerimónia. Em todos os feriados nacionais e datas comemorativas, nos edifícios públicos e de entidades nacionais. Instantes emocionantes, calorosos. É Portugal que se hasteia. E chora de comoção. Pelo lenço não.
Tinha que ser o futebol a ressuscitar a minha bandeira? Tinha?
Mas a minha bandeira tem as cores do meu país.E a minha bandeira não é do futebol. E o meu país não se reduz a uma bola a jogar. E o fado não conta?
Nota - Estou furiosa! Portugal perdeu com a Alemanha. Outra vez! Lá se foi a hipótese de ver a minha bandeira hasteada...um dia será, eles é que não.
(A bandeira é de Portugal, porém a imagem é da Internet)
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]