Em sonho lá vou de fugida, Tão longe daqui, tão longe. É triste viver tendo a vida, Tão longe daqui, tão longe. Mais triste será quem não sofre, Do amor a prisão sem grades. No meu coração há um cofre, Com joias que são saudades. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar. Ó bem que me dá mil cuidados, Tão longe daqui, tão longe. A lua me leva recados, Tão longe daqui, tão longe. Quem me dera este céu adiante, Correndo veloz no vento. Irás a chegar num instante, Onde está o meu pensamento. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar, Tenho o meu amor para além do mar.
Gostava de me empenhar e poder fazer o que agosto ainda não deixou. Andar para trás para calar o relógio. Atirá-lo ao chão e dizer-lhe que bastava de ladrões do tempo. Saborear o perfume da terra e lamber o mar. Colher um ramo rubro de papoilas e enviá-lo para o céu. Tourear um touro e cair na arena sobre o bruaá silencioso das bocas desconhecidas que poisavam nas bancadas. Calar o ruido dos ruídos de tantas vozes difusas.
Apetecia-me apanhar sol na proa da traineira e ver o sol a cair e não o poder ajudar. Saltar para o rio e molhar-me de muito. Chegar à meta sem querer dizer o lugar. E falar para no meio das palavras chorar o silêncio num eloquente e enorme discurso. Poder fechar aqueles livros. Com o mesmo desejo com que um dia os folheei. Erguer-me na proa da mesma traineira azul e morrer descansadamente. Na elegância do azulado do rio.
Queria, agora que agosto já não deixa, desviar-me. Sem que me molestassem. Ou quisessem ver-me muito longe de mim.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]