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ponto de admiração

ponto de admiração

01
Jun15

Pinheiro [no baloiço da memória]

Paola

pinheiro.jpg

Hoje é junho. E eu lembrei-me de agosto. Cálido e morno. Adormecido. Da cor da terra. Da areia que se bambeava debaixo dos pés. Da água morna e doce que corria no rio. No azul que se segurava na minha pele e que me recuso a despir. Exatamente porque não sou criança. Apenas elas conseguem libertar-se da roupa que vestem. E escolher novos modelos, novas cores. Sem arrependimentos, nem culpas.
Porque ser junho é que recordei de todos os meses do ano. Dezembro também estava lá. Carregado de frios e agasalhos. Com sabores adocicados e salpicados com canela que a minha avó trazia nos dedos. Nas mãos guardava a coragem do vento e os sabores de menina.
Porque é junho, fui buscar o pinheiro. Bravo. Alto, esguio e verde. Foi aí, num ramo robusto, que pendurei o balancé. Depois, balancei-me para cá e para lá. E, ainda hoje, adivinho o vento a acarinhar o meu corpo. O mesmo estonteamento. O mesmo tremor. Só que mais violento. Porque o pinheiro já não vive ali. Nem eu. Que já não sou a mesma que se balouçava à tardinha.

 

(Fotografia da Internet)

18
Set12

caminhar pelo passado [para ouvir a cegonha]

Paola

 

 

Ignoro a existência de alguma lei que me barre a possibilidade de caminhar pelo passado. Com o mesmo compromisso com que ando por aqui. Deve haver, mas não me interessa a razão. Há pessoas que não têm um tempo para onde ir. Inventam leis. Não me importo. Eu vou sempre que quero. Às vezes não quero, mas vou.

Cheguei cedo à praia. Desci a duna, atravessei a ponte que cruza o canal. E fui. Molhei os pés. Sentei-me na areia. Rebolei satisfações. Vi os caranguejos que se entretinham com conversas arreliadas. Desorientados, encetavam viagens ao contrário. E voltavam sempre ao mesmo local.

Uma garça. Outra cegonha. Tanto silêncio. Um peixe sorria na água. Na outra margem a cidade. Uma onda sossegada que chegava e se desmazelava nos meus pés. Mais nada.

Entrei na água num mergulho ávido e fresco. Sacudi os cabelos. Tornei a entrar. Limpei os olhos da doçura da voz que me molhava o rosto. A minha mãe dizia-me que estava na hora de ir para cima. Que o almoço estava pronto. Que o pai não gostava de esperar. Só tive tempo de lhe responder. E gritei: já vou!


Ergui os olhos para o céu e sorri. E pensei que um dia destes hei de ir passear outra vez. No desconhecimento da lei.


19
Abr09

re-editar

Paola

o meu livro é da cor do azul-rio
 
 
Um dia, alguém me escreveu. Páginas e páginas de letras delineadas com emoção. Muitas ilustrações preparadas com mãos de sabedorias de bem-querer! Tantas paisagens em que eu me reinventava. Outras desenhadas só para mim. Predominava o azul do meu céu que vai do lado de cá até lá… E eu não sei em qual das margens o azul é mais estendido… o sol, esse brilha mais do lado de além… Onde os poemas conversavam pacatamente com a alegria da concertina… Onde a melancia se desventrava no deleite encarnado da abundância… Onde a batata era doce e se desfazia em cuidados ao calor do lume que crepitava na chaminé… e o café pululava na cafeteira de esmalte azul… A minha paisagem tem os sabores do lado de lá…
 
No sábado, reescrevi um capítulo do livro… de ruas e vielas. Aperfeiçoei algumas imagens já amareladas por tanto tempo sem ver… Unicamente eu as vi, porque só eu as posso ver. As que estão, não são as que eu desenhei… Ali mesmo, na praça pública, escrevi mais poemas… memorizei-os todos… para que os possa dizer de cor… ou não. Vou guardá-los no meu olhar…
 
Não! Não os vou parafrasear. Estou deslumbrada com as palavras que inventei... Oponho-me a dissecar poemas. Afasto a hipótese de humilhá-los com um esgravatar feito interrogatório de motivos, consequências e deduções… Não lhes quero engendrar vontades que já esqueci e que nem sei se desfrutei. Recuso intenções que ignoro, embora minhas, neste tempo que não é mais o outro… Se leio um poema, perco-me no sentir… e gosto. Quando não gosto viro a página… E neste livro comum, a que chamo vida minha, a poesia não quer leitor… até eu me confesso incompetente no meu analfabetismo funcional… Foi escrita sem motivo e não quer entendimento...
 
 
O livro, que me escreveu, pereceu às pegadas do tempo… e eu mais não sou do que um rascunho mal acabado… Regressei a casa, onde, na calada da noite, o vou re-editar... 
 
20
Mai08

à janela - devaneios de bonecas

Paola

d O medronhal acordou repentinamente. Sobressaltado. Os medronheiros espreguiçavam-se em movimentos cadenciados. As folhas, uma ou outra, deslizavam lentamente. Acabavam no chão a trautear trovas ao vento. Um soalho negro. Fresco e macio. Um tapete matizado de castanhos, de verdes e alguns amarelados. Aqui e ali, o vermelho-agonizante dos medronhos que não susteve o vento. Repito esta palavra por não conhecer letras para escrever outra. Pronunciei-a vento e soube-me a vento. Não sei outra.

Uma terra fertilizada pela sombra das grandes árvores. Uma terra que eu tinha nas minhas mãos porque a remexia na ânsia de encontrar isco para as ratoeiras. Formigas com asas, agudes para uns agúdias para outros, e uns bichinhos amarelos que se enroscavam numa vã tentativa de escapar, cujo nome já não me lembro. A memória é selectiva. Prefiro recordar os pássaros e os tais bichinhos sem nenhuma ligação entre si. Foi um vício horrendo que perdi no dia em que capturei um pisco vivo. Tratei dele numa gaiola que não tinha o cheiro húmido daquela terra. Não resistiu e eu derramei lágrimas de arrependimento. Nas ratoeiras nunca mais lhes mexi. A partir daí, apenas me tenho cruzado com aquelas que a vida arruma no meu caminho.  

Uma terra, dizia eu, leve e solta. Cheirava a cogumelos silvestres. De todos os tamanhos. Com chapéu e lâminas cor violeta. Sem chapéu. Sem dúvida que preferia os Boletus aereus. Pela combinação de cores, pelo chapéu castanho-escuro, pelo pé castanho. Será por isso que os cogumelos dos livros usam quase sempre chapéu? Bem cedo aprendi a destrinçar os bons dos maus. Por sobrevivência. Por hábito. Todavia aqueles cogumelos eram carrascos de ninguém! Protegiam-se, só isso.

O grito que nos despertou ainda planava no ar. Uma contínua propagação sonora. Os piscos romperam a perenidade das folhas e abalaram. Os pardais insistiram na permanência, unicamente mudaram de medronheiro. As poupas, não as voltei a ver. Os medronhos teimaram em não continuar a amadurecer. Esperaram por mim. Eles sabiam que eu voltaria. Eu voltava sempre. A perturbação de silêncios assentou e doeu. As páginas escritas com caligrafias enternecidas, nas tardes que ali passava, acabavam de ser lidas por alguém que nunca as compreenderia. Por uma questão de linguagem. A minha, a dos pássaros e a dos medronheiros. Dos medronhos também. E dos piscos que trauteavam sublimes melodias.

 

 

- Já vou! Gritei de modo a ser escutada no lado de lá. Não queria intromissões.

 

 

 

A minha mãe persistiu no chamamento. Afinal, eram horas de lanchar. Convenhamos que a merenda vinha mesmo a calhar. Mas permaneci zangada durante algum tempo. Não era justo, resmungava eu, suspender sossegos. Cumplicidades e silêncios. Lanchei no mais profundo mutismo. De tal maneira, que a mãe resolveu compensar-me pelos danos provocados. Tinha uma surpresa para mim. Explicou que tinha dúvidas quanto ao momento da oferta, que não sabia se o deveria fazer. Eu persisti taciturna. Pensei que ela me estava a enganar, a corromper, com falsas promessas. Às vezes as mães têm destas coisas. Fantásticas, as nossas mães. Admiráveis, mesmo quando nos intrujam.

 

Levantou-se da cadeira em que se sentara. Olhou para mim, como quem olha para uma das maravilhas do mundo, e pronunciou qualquer coisa que não entendi. Eu continuava furiosa por ter sido compelida a deixar o medronhal. No exacto momento em que tinha apanhado uma formiga com asas. Uma dávida que tinha sobrado para mim.

Regressou com uma caixa de papelão. Grande. Muito grande, mesmo. Colocou-a calmamente no chão, devagarinho, numa dança mesclada de prazer, desejo e encantamento. Nos seus olhos destapei uma luz mais radiosa do que o usual.

 

 

- Vem ver. É para ti…

 

 

 

Eu fui, apesar de estupidamente despeitada. E vi o que sempre julguei impossível ver. O que acreditava impossível existir ao cimo da terra. O que não sabia que vivia. Assim tão bela. Ali estava, só para mim, uma boneca. Do meu tamanho. Uma perspectiva hiperbólica a mostrar quanto a boneca era, de facto, grande. Uma mulher! A minha mãe já a tinha trajado com um vestido cor-de-rosa, com folhos na saia e com uma fita que se transformava num enorme laço na cintura. Um vestidinho às florzinhas, como ela fazia para mim.

 

A boneca que antes tivera era de trapos. Dos retalhos que sobravam da costura da minha mãe. Paulatinamente, olhei para ela e tomei conta da realidade. Era de papelão, só a cabeça rodava, pés e braços esticados, olhos pintados de azul, boca vermelha, duas pintas fingindo as narinas, cabelo castanho-escuro. Apesar da minha incredibilidade, sorri para ela.

 

 

Hoje, tenho a sensação de ter aberto uma gaveta, dentro de mim, e ter reinventado o seu conteúdo. E dos silos dos meus sossegos reapareceu a saudade.

 

 

 


(imagem de www.stigmas.blogger.com.br/boneca.jpg)

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11
Mai08

pelas memórias - pour toutatis

Paola

t Por formação, e por opção, sou mais dada às línguas românicas. Há muito tempo que Obélix entrou na minha vida. Trouxe amigos, também. E Gérard Depardieu. À universalidade da língua inglesa, muito pela potência do dólar e do petróleo, contraponho a cultura, o humanismo, a arte, a música, a história, o latim como berço civilizacional. Quem sabe se com tanta globalização, não voltaremos a falar uma língua só. Na busca do entendimento perdido. Hoje, abro uma excepção. Excepcionalmente! Só porque me lembrei do mundo, de uma terra e particularmente de uma pessoa. Com ela partilhei emoções, conhecimento, sorrisos, verdade, consciência, trabalho... na voz desta canção. Por isso, fui procurá-la. Até porque o intérprete não consta da lista dos meus preferidos. E voltei a ver lágrimas no rosto emocionado das hoje mulheres, outrora meninas. Admirável ter memórias! Porque o segredo é amar... Pour Toutatis!

 
Earth Song

What about sunrise
What about rain
What about all the things
That you said we were to gain...
What about killing fields
Is there a time
What about all the things
That you said was yours and mine...
Did you ever stop to notice
All the blood we've shed before
Did you ever stop to notice
The crying Earth the weeping shores?

What have we done to the world
Look what we've done
What about all the peace
That you pledge your only son...
What about flowering fields
Is there a time
What about all the dreams
That you said was yours and mine...
Did you ever stop to notice
All the children dead from war
Did you ever stop to notice
The crying Earth the weeping shores
(...)

 

MICHAEL JACKSON

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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