O relógio já não é novo e falta-lhe a paciência para as horas. Queixa-se das noites mal dormidas. Do barulho cadenciado e consecutivo. Para além disso, confessa, os braços giram cansaços e afrontas. Outrora, e com toda a dedicação, eu dava corda ao relógio. Acertava-lhe os ponteiros com o ritmo da melodia.
Agora, exige o tempo. Ao relógio não bastam as horas. Quer o mesmo tempo que eu guardo nas mãos. Digo-lhe que não. Que o mastigo o tempo com o sol todos os dias ao acordar. E o relógio persiste num continuado sintético. Nos recursos disponíveis. Ignora a vida que lhe dou. Que lhe tiro.
Roubou-me a areia. Cortou-me o vento no mesmo instante em que rasgou os anos. Juntou os dias e perdeu-se numa amálgama de momentos. É assim que o meu tempo chega de barco. Eu vou para lá com uma vontade aberta de chegar, desnudada de horários estreitados. Entro na água e o meu corpo leva-me numa inesperada maré de azul sem que a ordem seja restabelecida.
Na parede da sala, o relógio dava horas que se intrometiam nas paredes da casa. Sem saber que eu vou buscar tempo todas as manhãs. No meu horizonte não há horas, antes o relógio do meu avô. Lindo, com uma corrente dourada e comprida que se agarrava à casa do colete. Na tampa, os motivos de caça. Uma lebre escondia-se no colo daquele bolso pequenino.
Na parede da sala, o relógio calou a voz, enquanto os ponteiros marcam o tempo que me apetece. Que eu sei e me aquece. Porque em cada relógio mora um tempo diferente.
O vento rodopia rápidas reprimendas. Por aqui e por ali. Mais além, acolá também. Divulga-se, voa, galga mares e escala montanhas na mais completa ânsia de transposição de espaços. Dispersa-se nas línguas e nas gentes. Sabe segredos que partilha a cada esquina. O ancião carrega uma mão cheia de sentidos. E pelos dedos, conta um a um… concluindo, invariavelmente, que lhe falta outro. Que a conta está errada!
O tempo inveja-lhe o ofício. Quer ser vento, de manhã, à tarde, até de noite. Por isso, põe-se a acontecer, implacavelmente. O vento graceja da incapacidade. Lembra-lhe a ausência de mãos e acrescenta que não tem sentido o que teima em fazer. Que guarde as asas! Quebradas não chegam ao céu… alerta.
Percebi a dignidade do vento. Se não desperta todos os dias com a mesma intensidade, a erro é do tempo. Ao relógio, extingo a corda… vou deixá-lo a abolorecer. Sempre que o meu relógio não tem tempo, a minha liberdade solta-se com o vento.
Nasceu ele e tu mais eu. E mais os outros. E nascemos todos os dias. Para renascer no dia seguinte. E depois no outro que não há tempo para perder. E se o houver é intrujice. Porque alguém ousou atrasar o relógio que geme na parede rebocada da sala. Sangrando ao sabor de negras horas. Celebrando porque há instantes ditosos. Desumano, todo aquele que se afoita a apressar os ponteiros.As horas correm aceleradas. Para a frente e para trás. Excessivas. E a saudadesurge limpando os rostos, sempre que o passado e o futuro se amotinam no presente.
- E quem se atreveu a controlar um tempo que sou eu?
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Fala! Só quero um nome. Depressa não há tempo para desbaratar!
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Como ousas desafiar-me? Diz-me quem te moveu!
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Teimoso! Não vês que os ponteiros nem precisos são?
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Burro! Confundes tudo. O relógio não é o tempo. Tu não nasceste assim. Evoluis, mas não mudas. Eu sou. Eles crêem que me controlam através de ti. Que nascer é o mesmo que viver.
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Eu sou o tempo, não percebeste? Eu vivo em cima das árvores que me escondem e protegem. Há gente ruim que persegue o meu final. Tu és um adorno, eu sou o princípio e o fim.
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Desgraçado! Cego e manipulado! Eu perduro para além de ti. Tu vendes-te por aí. Eu vivo ao sabor do Sol e das marés. Tu és um tic-tac constante que eu silencio. Tu emperras na ausência de mim. Marcas lembranças e utopias. Invenções. Desejos que se agasalham no vão das horas. Compromissos impostos com hora de entrada e de saída. Com hora de almoço medida e contada.
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Imbecil enfeite! Tu mostras o que eu quero que digas. Tu és a minha boca. O meu corpo. Eu sou eu. Tu és acessório figurante. Eu sou essencial. Nasci primeiro. Eu sou assim!
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
E o tempo, farto de tanta teimosia repetida, abalou. E pensou em D. Quixote. E naquela mulher que, um dia destes, encontrou no autocarro. Que se queixava de não ter tempo para nada. Que jurava que o relógio andava sempre adiantado. Que as 24 horas estavam falsificadas. Que trabalhava que se fartava. E era duro o trabalho que fazia. Mas, rematava ela que “quem nasce lagartixa não chega a jacaré". Pois não. Às vezes chega. Se tiver tempo. E é exactamente por essa razão que um relógio nunca chegará a tempo.
Já na rua, sorri. E gargalhei. Ao mesmo tempo que as minhas mãos retorciam a corda do relógio. Com entusiasmo. Com impiedade. E fui-me embora convencida que havia roubado o tempo…
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]