Eu moro aqui. Num segundo andar com gavetas para a rua. Dois vasos. E a salsa e os coentros agonizam num verde amedrontado. Deve ser por causa da velocidade do dia. Do nevoeiro… talvez da luz.O prédio ao lado também tem gavetas. É lá dentro que as pessoas se arrumam, contaram-me no café em frente enquanto bebia um café muito escuro. Ou desarrumam-se, titubeei. Umas dobram-se sobre os dias. E saem à rua com vincos no rosto. Não sei quem são. Não se mostram nos estendais. Um estendalé um acessório que garante que as roupas não fiquem amarrotadas e que se mantenham em perfeitas condições. Mas as pessoas esquecem-se do vento e o sol. É preciso que a chuva chegue e que escorra pelos telhados em grossas gotas de água. Elas abrem as janelas, curvam-se e atiram-se às molas coloridas. A chuva não lhes pertence. Depois fecham as janelas. Por vezes apagam as luzes. Dormem. Devem dormir, não sei.
Outras vivem agarradas aos dedais cor-de-rosa que libertam perfumes baratos. Assumem ares desconfortados e esquecem-se de dizer bom dia. Eu não as ouço. É por isso que concluo que não falam pela manhã. Talvez não queiram ser vistas. Nem elas e muito menos a galinha. Ignoro a cor do galináceo da minha vizinha. Duvido que tenha um. Mas deveria ter para que o provérbio se cumprisse. O problema são as penas.
E há as outras. As que dizem tudo. Falam de mais porque falam. Cumprimentam e murmuram mazelas. Raramente as próprias. Afiançam que as suas não têm serventia. Tomam o café e desenham planos para o jantar. É que os maridos são rigorosos na hora do comer e não consentem negligências domésticas. Às vezes lá confessam que os homens se excederam. Que avançaram sem pensar. Que disseram palavras sem ponderar. Que não foi por mal. Estavam cansados, coitados. Mal as vejo. Desconfio que não estão à janela. Mas sei que existem. Numa gaveta e muito desalinhadas.
Na cave, uma espécie de cómoda baixa sem gavetas e com dois puxadores. É aí que mora o João, um professor reformado. Tem um cão e muitos vasos no terraço. E uma bicicleta que enferruja encostada ao muro. Ele acredita que os dias são muito grandes. Lembra-se da escola, dos alunos e do caminho que já não faz. E sorri. Depois vai-se embora. Só volta de vez em quando. Rega as flores apanha a roupa e lembra-se que gostava de não estar reformado. Arrepende-se logo a seguir e afasta-se. Vai porque eu oiço a porta a bater. Sai a correr como se fosse para o baile. O João volta sempre, para se ausentar com a mesma pressa. Confessa que tem, agora, menos tempo.
No outro lado, não sei quem está. Às vezes, oiço os passos de um homem cansado. Doente, pela certa. Magro e silencioso. Tem um casaco de fazenda com uns quadrados enormes. Não gosto do casaco. Porque abafa dores desbotadas. Desânimos que não consegue abandonar no hospital. Devia. Entra em casa sempre com pressa. Estende a roupa para depois a apanhar. Come peixe cozido sem sal e bebe muita água. Isso vê-se na cor da pele, no corpo franzino e na fragilidade das mãos. Tem visitas que eu bem as oiço. A ele é que não. Um senhora já de meia-idade que fala em excesso. Gorda, com uma pele desalumiada muito cansada. E um homem ainda jovem. Apanham roupa. Falam. Alinhavam os dias seguintes e vão-se embora. O homem da cave fica sozinho. É por isso que se deita cedo. Para se levantar e sair. Garanto que ele mora na cave. A porta bate sempre ligeiramente. É um bater adoentado, com robe e pantufas.
Hoje, vi o inquilino da cave. Eu entrei no prédio e ele saiu. Foi-se embora. Nunca me disse como se chamava.
Nem disse bom dia. Apenas impediu que a porta batesse. Mas eu cumprimentei.
Não faz mal, ele ia com pressa. Foi pena! A gaveta Fechou-se no mesmo instante em que se abriu. Nos prédios as gavetas andam assim. Ou não andam.
Assim o trato. Nada mais piroso que a cansada saudação de “meu querido diário”. Querido? Que denguice peganhenta! A estranheza do pronome imporá limites confortáveis. Detesto palavras sem perfume. Sem voz. Quero lá saber da nobreza, mesmo que duvidosa, do termo. Vossa mercê entenderá a impossibilidade. Destapar o intimismo da minha pele. Aquilatar a minha fome e sede de desvinhos e alegrias a nada conduziria. Fico-me pelos copos de jazz. À noitinha. E penso que você nunca seria eu. Você. Parece-me bem. Frios e distantes, para não resvalarmos em confidências obscenas. Não me conhece. Eu nunca o vi. Essa amizade rolante que apregoa esbarra no logro da proximidade. Cruzámo-nos ao meio dia e doze minutos, lembra-se? Claro que ignorou o susto que me pregou e o grito que você chiou. E já garante uma amizade burlada no olá que me recuso a dizer e que você não para de corvejar? Deixe os bichos em paz que são de Lisboa. Devotos a S. Vicente. Que absurdo. As suas páginas são fossas devoradoras de precipícios humanos. Quer lá saber de lendas! Cale-se. Já conheço esse paleio. Afiançar-me que aferrolhará as minhas palavras a sete chaves é mais uma das suas patranhas. A exuberância, que exibe, advém-lhe de uma chave e de um insignificante cadeado de segunda ordem. Provavelmente, você até um daqueles tipos que passa a vida na praça pública a vangloriar-se da coisa. Risível! Acocorado num banco de jardim decoradamente apurado por evacuações de pombos vagabundos. Você é um funesto cliente de caminhos que eu quero calcorrear. Se eu os escrever, deixo de apontar os atalhos. Prendem-se-me as rédeas. Perco-me nas direcções. Você é um covil que me castra a liberdade da minha narrativa. Eu escrevo para adiar a extinção do meu corpo. Por vezes, não entendo o enfermo impulso que me arrasta para a escrita. Só pode ser culpa sua. Vou denunciá-lo! Por me coagir. E também por assédio. Violação. Tédio infringido pela duplicação dos dias. Das horas. São vinte e uma horas e dez minutos… Como se eu me vendesse à cruel cronologia tempo. É o tempo que me consome, senhor! Não importa o delito. Apenas me proponho mover-lhe uma acção. De pequenas causas, diz você. O problema reside na apresentação das provas. Se me virasse do avesso, conseguiria. Não posso, nem quero, que é coisa íntima. Impugno lavagens de roupa suja na via pública. Não o conheço. Você não me sabe. Não me digo! Você não me conhece, por que lhe devo confiar as dores que me encharcam o corpo? Eu não o conheço, por que devo crer que você não é papel? Essa agora! Que treta! Bola de cristal? Você é doido. Só me faltava mais esta! Cartomantes, videntes, faquires e encantadores de serpentes… Tudo para animar dias ateus, esquisitos e crentes que a chave é a mão. Você não se enxerga, pois não? Evolução, relação, revolução, alimentação, corrosão, coração, perdição… Não!!! Então e as consultas pelo MSN, as adivinhações on-line. Qual bola, qual arte! Cartas, búzios, magias para afeições e felicidade, solução para todos os problemas, desbloqueios de felicidades. Um clique, um utilizador, uma palavra mágica… e a porta desaperta-se na desadivinhação da mente.
Percebeu a razão do meu tratar? Sim, você! Entendeu as desintimidades? Eu escrevo para, da proa da barca que me delimita, contemplar o rio que desagua aqui. Escrevo porque sou louca. Para não me engasgar com palavras que me aparelham a voz. Você é lixo flutuante. Maré negra de incautos desabafos. Desapareça! Recuso-me a ver a loucura das personagens que invento aferrolhadas em armaduras de aço. Você é chave, eu sou alforria. Você… Não se melindre! Você é sociolecto em Cascais. Minhas ricas tias!
Desci as escadas a correr no silêncio dos meus passos… apenas os degraus roncavam espasmos de dor provocados pela corrosão do tempo e pela distracção derrotada… pelo aguçar dos sentidos a cada fenda vibrada… Estreitos para os meus pés, chiavam espantos como clarins ao alvorecer da batalha, para anunciar a manhã. As passadas desmaiavam pelas tábuas enegrecidas… sem corrimão. E era noite, mais quarenta e dois degraus… um salto e um vazio.
Desci as escadas sem vivalma para bendizer… Persuadida de que já não havia ninguém com quem pudesse falar… nas escadas comuns... como converso comigo própria…
Aqui, no meu ponto de admiração, digo verdades. Digo mentiras. Ambas ficciono. Invento e reinvento. Aqui finjo ambas. E é nesta incerteza que gosto de estar. Porque eu conheço-as! Entre a verdade-máscara e a mentira-verdadeira. Um jogo duplo. Que as palavras me deixam jogar. Ou não. Admiro-me com o sim e com o não.
Com o pôr-do-sol. E o perfume das flores. A emoção chega com as gargalhadas puras e sonoras dos meninos. Com o Sol a acariciar o mar. E só com o mar. Admiro-me com todos os sentidos. Por isso, choro com as desgraças que por aí há. Praguejo com as que me inventam. Porque a vida é assim. Abraça-me umas vezes, chicoteia-me outras. E eu, às vezes, não a percebo. E chego à conclusão que ela me plagia. Que mente e diz certezas. Que fantasia. Provavelmente, terá um blogue com o mesmo título que o meu. Um dia, hei-de encontrar o endereço. Só que sabe mais palavras do que eu. Para dizer os sentimentos todos. Eu nem sempre sei.
Hoje, somem-se as palavras que eu demando. Esgota-se a intenção de jogar e fingir que estou a mentir. Ou não. Não me apetece redigir invenções de mim. Não sei palavras que me exprimam. E creio que estou a maltratar o não. Um triste advérbio de dizer não. Porque não quero. Mas eu não decreto, que fique claro.
Estou desgostosa. Não sei sinónimos. Não sei definições. Nem decisões. Mas estou. Pronto! Já disse. Por causa das pessoas. Que pensam que dividir é o mesmo que somar. Precipitações apressadas. Sim, talvez, NÃO!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]