E se elas falassem? Diriam que sim, na total assunção da personalidade. São palavras que eu sei, mas não digo. Sílabas obstinadas que calam o meu silêncio. Dissonâncias que apunhalam. Mimam. Sonham e gemem comigo num doce e profundo navegar. E vou por aí. Tal nau empreiteira de mares e viagens e desejos e saudade. Outras vezes não. Sinto-as asas ou pétalas ou folhas desfiadas que me engadelham o pensamento. Numa maré de tempo. Que é. Porque foi. E se elas falassem? Eu ficava. Na certeza que há canções que me adivinham. Como o mar que me festeja com poemas. Só não tenho a certeza se este rio é uma canção. Música ou baile. Mas é um poema!
Hoje, vou revelar-te um segredo. Não pretendo que cantes. Que rias ou que me digas que sabes onde fica o desejo. Porque não sabes! Tu nunca ouviste o rio a cantar. Nem te atreveste a socorrer a gaivota deitada na areia. No rio havia um bote. E no bote, umas mãos que me abrigavam dos ventos e das marés. Sobravam as gargalhadas que trepavam pela duna. Um sorriso que me vestia quando pulava para terra. Não sabias. Agora, não quero que o vulgarizes. Ninguém compreenderá que o rio corre ao contrário e que se derruba na foz como a mesma voracidade com que o tempo me rouba os momentos. Porque desconheces que eu sou água e ignoras o que é partir e ficar. A olhar o rio…
Hoje, parto. Amanhã não. Eu vou em ti. Fiquemos assim. Que a hora seja de neblina densa e quente. E que eu me resuma ao que sei. Não existe o que está para além do meu saber. Por isso, larga as amarras e vamos. Que no ancoradouro pernoite quem desconhece o salgado e doce sabor do trajeto. E da natureza dos nossos corpos. Onde quer que seja.
A minha janela não se abria para o mar. Nem para o rio. Era uma janela pequena, com duas metades envidraçadas. Agarravam-se à parede com dois ruidosos ferrolhos. Pela manhã abria-a. E de imediato entrava o canto dos pardais. E o areal que se alongava até à fonte. Para o lado esquerdo, os pinheiros. As murtas e a carqueja abraçavam-se no branco das bagas. No amarelo das flores. O baloiço rangia as cordas empurrado pelo vento. Por vezes, subia até às carumas e caía. Para recomeçar outra vez. Um pinheiro manso e suave. A copa densa e ampla arredondava-se em forma de chapéu-de-sol onde eu cabia inteira.
Não me importava que a janela não se virasse para o mar. Porque o rio entrava pela porta. Dava a volta à casa e estendia-se no areal. Brando como a sombra do pinheiro. Orio não cabia na janela.
Já não existe a janela. Nem a porta. É por isso que o rio também desapareceu. Agora, apenas corre livre pelo meu corpo. Recuperado da minha infância.
O dia acordou enrolado num nevoeiro cerrado. Fazia frio. Não se vislumbrava o sol, apenas um fecundo pressentimento permitia supor que chegaria mais tarde. E não lhe apetecia. O sol chegava sempre tarde, pensava, enquanto enterrava o rosto na almofada. Por vezes nem vinha. Outras vezes, eram reflexos amuados que desciam lentamente pela manhã. Eram quase nove horas. Tinha frio. No quarto caía uma quietude perturbada. Que permitia ver formas indistintas na imperfeição daquela indigente luz. Jacinta há muito que acordara. E percebia vozes. Nítidos os rostos. Corpos que se despiam na sombra do nevoeiro.
Aos pés da cama, uma banqueta magnificamente arrumada. Lacada de um nobre e preguiçoso branco, alindava-se num vermelho acetinado como o canto de paixão. Sobre o banco pé de cama, um robe curto. De seda pura com mangas largas, estilo raglã. Um luxo suave e doce que se prolongava na maciez do estampado. Debaixo do banco, o gato. A fidelidade felina ronronava a sua presença. Que estava ali, que gostava dela. Jacinta voltou-se e enleou-se no tempo, puxou o lençol. Agarrou o dia e ficou por lá. Ela sabia que Beatriz chegaria por volta do almoço. Na noite anterior, tinham acordado almoçar juntas para prosseguir as frases inacabadas. As incertezas e os medos. As fotografias que partilharam ao jantar. Era cedo. Muito cedo. Jacinta sabia que o gato se aguentaria quieto durante o tempo em que ela estivesse deitada. Ele não compreendia que a dona viajava. E caminhava para trás.
Quando tinha sede, refrescava-se alegremente na água que atravessava a pele daquela paixão. Mar teu. Rio nosso. E tinha sede os dias todos. De pisar a areia. De rebolar na ternura das vozes que entardeciam na traineira. Da correria do mel. E de ir à fonte. Dos cântaros empoleirados na cabeça das mulheres. Da alegria do canto. Das quadras de rimas naturais. Bebia. E embriagava-se numa bebedeira consentida com copos de poemas. Do lado de lá, não era preciso mais nada. Tudo chegava. No sublime encanto das oportunidades repetidas, ouvia tranquilamente o silêncio do azul. E voava ao ritmo do bater das asas das cegonhas que corriam para os ninhos elevados na chaminé da escola. Imaginava-se um pássaro livre que bebia silêncios.
Jacinta sentia-se refém do nevoeiro e do mar. E daquele beijo de despedida. Num instante em que o que mais queria era sol. Não podia. O Instituto de Meteorologia, antevira nevoeiro intenso que se iria dissipar ao longo da tarde. No dia seguinte, o Sul continuaria com neblina intensa.
Numa descida acelerada, todos as gaivotas correram para o mar. Numa histeria coletiva, num bando improvisado estenderam-se à beira-mar. E apregoaram o feito com gritos cansados. E tornaram com os mesmos movimentos nas asas. E queixaram-se de não ter tido tempo para brincar.
- Bom dia, princesa! Ainda de robe?
- Visto-me num instante. Espera um pouco…
- Jacinta?
- Hum?
- Está bem…
No tempo das papoulas vermelhas, ela não se atreve a procurar o mar, pensou Beatriz. E sentou-se.
- Teimosa, como é, não sei… De certeza que leva o rio…Ou o tempo. As asas e o azul.
Tu foste chão. Terra com sabor a papoilas. Eras a água e o pão que se aquecia no trigo. O arroz e os pés molhados na monda do alento. Um chapéu abado e a ternura dos dias que acordavam cedo no bico dos pardais. Tu eras risos e marés de ternos confortos. Cegonhas que se beijavam no cimo da torre da igreja. E da escola. Eras a mesa e o colo onde comíamos cerejas a cantar. Tu eras a coragem e a estrada que corria em direção ao rio. Os passos na areia e as corridas até à fonte. Depois chegou a manhã. O dia e o mês. A hora que junho murchou.
É o braço do abeto a bater na vidraça! É o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, a trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia mais da terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me à beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!
À noitinha, gosto de andar. Passadas ansiosas, mornas. Devagar. Dissolvo as horas, percorro a avenida guarnecida com linhas azuis vindas do rio. Atalho o tempo. Desfaço o espaço numa amálgama de aromas. Apago as sombras e os riscos. Gasto passos. E peço-te que não tenhas pressa. Que tornes aos gritos de outrora. Para irmos à feira voar no carrossel. Quero agarrar-me à girafa que teima em erguer-se na incerteza das voltas. Sentar-me no colo do cisne de brancos e quietos cantos. Quero as minhas nas tuas mãos reclamando palavras de algodão-doce. E prosseguimos num passo impaciente até à fonte que sustenta as verdes e bravas piteiras de figos açucarados. Eu gosto de andar. Correr pelo chão resguardado pelos versos dos poetas. Hoje não vou à rua. Não gosto que me obriguem a parar.
Em sonho lá vou de fugida, Tão longe daqui, tão longe. É triste viver tendo a vida, Tão longe daqui, tão longe. Mais triste será quem não sofre, Do amor a prisão sem grades. No meu coração há um cofre, Com joias que são saudades. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar. Ó bem que me dá mil cuidados, Tão longe daqui, tão longe. A lua me leva recados, Tão longe daqui, tão longe. Quem me dera este céu adiante, Correndo veloz no vento. Irás a chegar num instante, Onde está o meu pensamento. Tenho o meu amor para além do rio, E eu cá deste lado cheiinha de frio. Tenho o meu amor para além do mar, E tantos abraços e beijos pra dar, Tenho o meu amor para além do mar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]