Havia a outra margem. Era o lado de lá que se desfazia em acenos. Satisfação. Água. Contentamento. E muita areia. Depois regressavam as cegonhas. E os ninhos. Tanto voo para alimentar as crias. Equilibrismos. Asas ao vento na mira dos pastos. A minha mãe explicava-me que era assim. Que as mães tinham que alimentar os filhos. Que dava trabalho, mas que os cansaços sabiam bem.
Em baixo, o canal bordejado de verde. O colo de uma água tranquila. Segura no cumprimento da sua missão. Alimentar as lavras do arroz. Corria lentamente. E os rapazes atiravam-se a ela em mergulhos destemidos. Em despique. Ela ignorava-os. O arroz bebia-a até à última gota. Uma ponte. Cansada. Rouca de tanto alertar os miúdos. A seguir, sempre em frente, era a totalidade de tudo o que existia. O meu tudo. O rio, sempre o rio. Azul. Sossegado. Seguro. Apenas quando chovia se mostrava desinquieto. Havia o bote e os remos. E eu ia. Por vezes, e foram tantas, saltava um peixe. Eu sorria. Ficava a olhar, calada no silêncio líquido da maré cheia. Eu sabia que chegaria a vazante. Que não podia sair dali. O meu pai tinha-me ensinado os rostos do rio. Houve dias em que me esqueci. A solução era deixar o bote. Saltar para a água e caminhar pela lama atá à areia. Foi assim que comecei a saber o rio por dentro.
No meio do rio, não pensava em nada. Não havia hora marcada para a doçura do marulho. Pressentia-lhe os desejos. Ouvia-lhe as vontades. Conheci-lhe a voz. A dança e o ritmo. Os sonhos. Via-os azuis. Com sopros de tranquilidade. Eram sorrisos com sabor a sal. Eu lambia os dedos. E quando tinha fome, mergulhava. O meu corpo jurava que a água estava fria e ele ria-se com pequenas ondas de cristas alvacentas.
Há pessoas que nunca provaram um rio. Não o mastigaram num silêncio perfeito. Ignoraram a espuma. Que nunca correram atrás de um caranguejo. Nem engenho para segurar os lingueirões que se encovavam na areia. O meu pai sempre lhes chamou canivetes e é assim que me lembro desses linguarudos moluscos. A verdade é que a concha retangular, adelgaçada e longa cortava mesmo. Os distraídos e desajeitados. Os que nunca tinham saboreado o rio. Os outros não, que sabiam como pegá-los.
Lembro-me dos homens indignados. Com o vento e com a forte ondulação. Com o nevoeiro. Afirmavam as âncoras e a ausência das redes. As mulheres ignoravam os queixumes. Criticavam as invetivas desmesuradas. Asseguravam a inutilidade dos ditos mordazes, ofensivos, provocatórios. Que o rio era assim. Que era uma questão de liberdade. De autonomia.
E eu, que era obrigada a ficar em terra, fundeava no meu porto de abrigo. Era um quarto pequeno. Com uma enorme janela para o rio. Ali, eu construía botes de papel. Navegava. Fugia. E voava ao ritmo da maré. Só voltava quando a minha mãe anunciava a hora do almoço.
Queria tanto ser o dia. A noite e o mar. Enfiar o Sol na algibeira e escorregar pelo momento. Pisar o verde. Beber o perfume das flores. Desenhar ramos de papoilas. Trepar aos frutos e comer os figos. Para deixar as árvores agarradas à raiz.
Queria muito acordar abraçada à voz do meu passado. Beijar a manhã contar uma história de encantar. Com duendes pequeninos. E fadas. E o pipilar dos pardais. Parar no crepúsculo que paira na nitidez do quadro que jaz solitário na parede do quarto.
E se elas falassem? Diriam que sim, na total assunção da personalidade. São palavras que eu sei, mas não digo. Sílabas obstinadas que calam o meu silêncio. Dissonâncias que apunhalam. Mimam. Sonham e gemem comigo num doce e profundo navegar. E vou por aí. Tal nau empreiteira de mares e viagens e desejos e saudade. Outras vezes não. Sinto-as asas ou pétalas ou folhas desfiadas que me engadelham o pensamento. Numa maré de tempo. Que é. Porque foi. E se elas falassem? Eu ficava. Na certeza que há canções que me adivinham. Como o mar que me festeja com poemas. Só não tenho a certeza se este rio é uma canção. Música ou baile. Mas é um poema!
Hoje, vou revelar-te um segredo. Não pretendo que cantes. Que rias ou que me digas que sabes onde fica o desejo. Porque não sabes! Tu nunca ouviste o rio a cantar. Nem te atreveste a socorrer a gaivota deitada na areia. No rio havia um bote. E no bote, umas mãos que me abrigavam dos ventos e das marés. Sobravam as gargalhadas que trepavam pela duna. Um sorriso que me vestia quando pulava para terra. Não sabias. Agora, não quero que o vulgarizes. Ninguém compreenderá que o rio corre ao contrário e que se derruba na foz como a mesma voracidade com que o tempo me rouba os momentos. Porque desconheces que eu sou água e ignoras o que é partir e ficar. A olhar o rio…
Tu foste chão. Terra com sabor a papoilas. Eras a água e o pão que se aquecia no trigo. O arroz e os pés molhados na monda do alento. Um chapéu abado e a ternura dos dias que acordavam cedo no bico dos pardais. Tu eras risos e marés de ternos confortos. Cegonhas que se beijavam no cimo da torre da igreja. E da escola. Eras a mesa e o colo onde comíamos cerejas a cantar. Tu eras a coragem e a estrada que corria em direção ao rio. Os passos na areia e as corridas até à fonte. Depois chegou a manhã. O dia e o mês. A hora que junho murchou.
É o braço do abeto a bater na vidraça! É o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, a trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia mais da terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me à beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!
Ignoro a existência de alguma lei que me barre a possibilidade de caminhar pelo passado. Com o mesmo compromisso com que ando por aqui. Deve haver, mas não me interessa a razão. Há pessoas que não têm um tempo para onde ir. Inventam leis. Não me importo. Eu vou sempre que quero. Às vezes não quero, mas vou.
Cheguei cedo à praia. Desci a duna, atravessei a ponte que cruza o canal. E fui. Molhei os pés. Sentei-me na areia. Rebolei satisfações. Vi os caranguejos que se entretinham com conversas arreliadas. Desorientados, encetavam viagens ao contrário. E voltavam sempre ao mesmo local.
Uma garça. Outra cegonha. Tanto silêncio. Um peixe sorria na água. Na outra margem a cidade. Uma onda sossegada que chegava e se desmazelava nos meus pés. Mais nada.
Entrei na água num mergulho ávido e fresco. Sacudi os cabelos. Tornei a entrar. Limpei os olhos da doçura da voz que me molhava o rosto. A minha mãe dizia-me que estava na hora de ir para cima. Que o almoço estava pronto. Que o pai não gostava de esperar. Só tive tempo de lhe responder. E gritei: já vou!
Ergui os olhos para o céu e sorri. E pensei que um dia destes hei de ir passear outra vez. No desconhecimento da lei.
O rio está na obliqualidade da paciência da paisagem. E cuido que aquilo que contemplo não é certamente o que sucede. E penso que o rio, que aponto, existe para alcançar o mar. Que a água corre veloz. Como o tempo que se engasga nos seixos do leito deste rio. Eu é que não sei fluir naturalmente, na continuidade do meu caudal. Por desconhecer onde posso desembocar. Não me sei na sintaxe do açude que sossega a água na obediência das regras. No desconhecimento da nascente sôfrega do rio. No desagradecimento das areias receosas do mar.
E é na incapacidade de entender o rio que os olhos espargem lágrimas de noites alarmadas pelo silêncio do mar. Na contaminação das águas doces e salgadas. No plácido e celeste rio que irriga a perplexidade do meu olhar.
Nesta clara manhã de sol inquieto, acordei com um inusitado desejo de ver o mar. Aparelhar a cama e zarpar. Bracear à bolina, na fé de um vento propício. Neste existente tempo de caravelas perdidas no azul-partida, adivinho as velas a bailar. Asas abertas ao vento… ancoradouro da minha escolha… refúgio de anémonas-do-mar… de rosários e corais… É a opção que dói! A impossibilidade que rasga a pele.
Eu olho-o na carícia do meu olhar e largo a prioridade… velejo à deriva… na incessante busca da maré do princípio. Porque há beijos para além do mar… e, no rio, os búzios entoam cantigas de chegar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]