Hoje, parto. Amanhã não. Eu vou em ti. Fiquemos assim. Que a hora seja de neblina densa e quente. E que eu me resuma ao que sei. Não existe o que está para além do meu saber. Por isso, larga as amarras e vamos. Que no ancoradouro pernoite quem desconhece o salgado e doce sabor do trajeto. E da natureza dos nossos corpos. Onde quer que seja.
A manhã espreguiça-se abraçada ao Sol, escutando aves melodiosas que solfejam trinados felizes. Loas primaveris espalham-se pela rua abaixo. Num quintal, um papagaio berra, desafinado, poleiros que não quer. As pessoas passam, como se os caminhos as ofendessem e as outras pessoas carregassem a culpa da pressa que têm. Algumas atrevessem-se a parar e sentar-se na esplanada para o café matinal, na ânsia de suicidar o vício acumulado ao longo dos anos.
Lá em baixo, o rio alonga-se no comprimento do meu olhar, languidamente. Sem alvoroços. Numa cinzenta moleza desconcertante. O rio não anda… não corre… Está exactamente no mesmo local onde ontem o deixei. Eu estranho que assim seja, porque um rio foi feito para correr. Agarre-se às margens, mas cumpra-se na missão de viagem imperfeita! Rompa pedras, imponha-se e nasça outra vez. E sonhe que um dia será grande. Maior que as pedras que o encolhem. Mostre-se ao mundo e ferva na força que esconde.
Lá em baixo, não é um rio que corre no cumprimento do meu sonhar. Eu é que sou reflexo no espelho que é o rio… Volto para casa, na certeza de me ter destapado naquele plágio desfocado… com a alma molhada. Por tanto lhe implorar que seja o meu espelho. Quando me amarram os pés, eu só me quero ver no rio. Ou naquilo que corre como ele...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]