O relógio já não é novo e falta-lhe a paciência para as horas. Queixa-se das noites mal dormidas. Do barulho cadenciado e consecutivo. Para além disso, confessa, os braços giram cansaços e afrontas. Outrora, e com toda a dedicação, eu dava corda ao relógio. Acertava-lhe os ponteiros com o ritmo da melodia.
Agora, exige o tempo. Ao relógio não bastam as horas. Quer o mesmo tempo que eu guardo nas mãos. Digo-lhe que não. Que o mastigo o tempo com o sol todos os dias ao acordar. E o relógio persiste num continuado sintético. Nos recursos disponíveis. Ignora a vida que lhe dou. Que lhe tiro.
Roubou-me a areia. Cortou-me o vento no mesmo instante em que rasgou os anos. Juntou os dias e perdeu-se numa amálgama de momentos. É assim que o meu tempo chega de barco. Eu vou para lá com uma vontade aberta de chegar, desnudada de horários estreitados. Entro na água e o meu corpo leva-me numa inesperada maré de azul sem que a ordem seja restabelecida.
Na parede da sala, o relógio dava horas que se intrometiam nas paredes da casa. Sem saber que eu vou buscar tempo todas as manhãs. No meu horizonte não há horas, antes o relógio do meu avô. Lindo, com uma corrente dourada e comprida que se agarrava à casa do colete. Na tampa, os motivos de caça. Uma lebre escondia-se no colo daquele bolso pequenino.
Na parede da sala, o relógio calou a voz, enquanto os ponteiros marcam o tempo que me apetece. Que eu sei e me aquece. Porque em cada relógio mora um tempo diferente.
Eu nunca te pedi facilidades. Nos teus olhos dispus as imagens que moravam no meu corpo. Às tuas mãos atei amarras de fibras trançadas de sol.
Na tua mão direita, lembras-te, erguiam-se cordas libertas da admiração. E o rio dançava musicatas azuis. Enquanto nos teus olhos passavam alegres composições verdes. A gente cantarolava ao som do violino que entrelaçava acordes perfeitos. Numa tensão afinada.
Agora eu sei que o tempo enferruja o equilíbrio. E que os nós se agarram às cordas. E obrigam a habilidades de coordenação rítmica dos dedos. Cadenciada e com intervalos regulares.
Mas eu não sei como se desatam os nós. Nem tocar sem que umbeijose solte num sopro de sonoridades irrepreensíveis.
Já não é tempo de cerejas. O sol cai sossegadamente no colo da colina e os homens abdicam das cestas. Calam-se as cantigas dos dedos e desarrumam-se as mãos que não acertam com a eficácia da mudança. É um retrocesso que se estende pelo vale. Apenas uma brisaabafada segue o mesmo caminho. Sem atalhos. Pelo trilho das pedras. Para recuperar o sentido do compromisso, os pássaros empoleiram-se nas árvores despidas de frutos. E olham numa incessante busca de equilíbrio.
E estepássaro que aqui chegou conserva o ritual e recusa-se a construir o ninho no chão. Crava o olhar no infinito na ilusória busca de locais com abundância de alimentos. No cimo da árvore, compõe o voo para ir mais longe.
Já não há cerejas no vale e eu não sei onde ouvir os pássaros. Fazem-me faltas as perfeitas melodias sem hora marcada. A beleza das penas. Os silêncios alegres. Mas sei que vou continuar a ouvi-los. Porque “os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas.”
há instantes que são ventos na irrepetibilidade do sopro
Quando olho pela janela, vejo flores. E muitos barcos... Às vezes, perco-me na imensidão do espaço, no comprimento do tempo... e penso. Penso nas paisagens que tive e sinto saudade. A minha cabeça enche-se de nostalgia... porque são momentos irrepetíveis. Com acordes melodiosos, a minha memória seduz esse olhar...
O vento rodopia rápidas reprimendas. Por aqui e por ali. Mais além, acolá também. Divulga-se, voa, galga mares e escala montanhas na mais completa ânsia de transposição de espaços. Dispersa-se nas línguas e nas gentes. Sabe segredos que partilha a cada esquina. O ancião carrega uma mão cheia de sentidos. E pelos dedos, conta um a um… concluindo, invariavelmente, que lhe falta outro. Que a conta está errada!
O tempo inveja-lhe o ofício. Quer ser vento, de manhã, à tarde, até de noite. Por isso, põe-se a acontecer, implacavelmente. O vento graceja da incapacidade. Lembra-lhe a ausência de mãos e acrescenta que não tem sentido o que teima em fazer. Que guarde as asas! Quebradas não chegam ao céu… alerta.
Percebi a dignidade do vento. Se não desperta todos os dias com a mesma intensidade, a erro é do tempo. Ao relógio, extingo a corda… vou deixá-lo a abolorecer. Sempre que o meu relógio não tem tempo, a minha liberdade solta-se com o vento.
"O tempo cansa-me. Sobrepõe-se-me. Atreve-se a ensombrar passos amedrontados. Atropela-me sorrisos, faz-me encobrir emoções. Agita marés de falsos entendimentos. Desassossega-me, torna-se rebelde, de mansinho, de súbito, num breve instante. Dá reviravoltas às minhas certezas, brinca com os meus espaços, dá um passo em frente, outro atrás, troca-me as voltas. Deixa o meu olhar alvoroçado, inquieto, desajustado. Abre asas à minha eterna agitação, torna-me em instantes forte, e logo de seguida, ao abraçar o som calado das minhas memórias, deixa-me enfraquecida. Por vezes, faz-me esquecer o aroma das muitas velas colocadas e apagadas num doce bolo de anos envolto num açúcar tão branco, a afastar os receios...
Por vezes devolve-me pedaços de sonhos envoltos em algodão doce...O tempo cansa-me...Talvez apenas por ser bem mais forte do que os meus sonhos... "
MLB
Faz um tempo que não recomendo. Tem uma toada que estranho...Obrigada por teres tempo para mim e pelas palavras que me deste...
Amo-te! Não distingue o presente do pretérito? Perfeito? Ninguém diria... Maldito tempo! Também amei. Não creio! Amaras tu alguém e … Outra vez! Cala-se! É uma mistura explosiva. Cuidado, amiga. Amor mais-que-perfeito não existe! Ora… e é preciso esse imperativo totalitário, é? Que queria, então? Vê, agora é o senhor. Perfeito! Qual condicional! Ah! Amaria se pudesse… Não me chateie. Quero um indicativo real. Certeza e realidade. Sem me importar com tempos. Que seja pretérito perfeito. E foi! Que tenha sido imperfeito! Também. Mas absolutamentemais-que-perfeito. Foi! Repare que foi a senhora que assumiu a possibilidade expressa nesse conjuntivo duvidoso. Que imprecisão! Tem dúvidas, é? Saia da minha frente! Que aborrecimento… Desculpe? Ordem ou conselho? Claro, um pedido… Não! Soa-me a instrução. Por favor, não me arruíne o dia. Desapareça!!! Calma! Não seja tão impulsiva. Eu vou… Graças a Deus! Até que enfim um presente a indicar o caminho. Não sei… Talvez volte amanhã! E voltaria com muito agrado. Tenho estado a pensar que … Também pensa? Abale e pense depois. Bem longe daqui. Continua irritada. Eu? Sim! É tempo de sair… Já deveria ter ido e ainda me fala de tempo! Que descaramento. Tenha modos! Ter, eu tenho. A senhora não me está a entender. Tenho todo o tempo do mundo para si! Arrogante! Presunçoso! Então, o que é isso? Difamando? Pronto! Era só o que me faltava! Algemando a conversa. Afligindo-me nessa inútil continuidade. Eu explicaria, se se calasse… Treta! Não quero ouvi-lo mais. Estou farta. Percebeu? Oiça o que falo… foi apenas uma condição. Como não se cala não vou explicar nada, percebeu? Não! Mas posso calar-me…
Amou?
Ama?
Amará?
Amar-me-ia?
Desapareça! Morra! E publique no jornal que foi morto. Não se preocupe se é morto ou matado… O importante é ser particípio muito passado. Na primeira pessoa do singular.
Não sei se quero. Se calhar até quero e não sei… Provavelmente não. Ou posso e não sou capaz? Sinto-me embrulhada em protótipos culturais com lacinhos tão banais. Que seja mais um, que depois venha outro… que seja! Eu sou a soma de todos os anos que carrego, na recusa de ser uma simples adição.
Ano Novo,Vida Nova?
Não sei se será… Talvez com mais silêncio… A minha vida não será nova porque não deitarei fora o tempo que já agarrei. E o tempo fluirá pelas palavras que direi. Espontaneamente. Adornar-se-á nas figuras de estilo que inventarei... nas sílabas que suspirarei... na busca incessante de eufemismos que urdirei para calar desconcertos hiperbólicos. Teimoso, o tempo, repetir-se-á em soantes paralelismos anafóricos. Todas as manhãs, apesar de mim.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]