No céu, as nuvens acontecem debruadas com orlas de azul… e recolhem, no ninho do seu afecto, sonhos atirados para o ar. No mar, as mulheres espalham rezas avivadas com marés de esperança … e serenam, no colo da sua fé, vendavais da sua pele molhada…
Em terra, eu adormeço na amálgama do mar e do céu … e choro por não lhes conseguir tocar… na perplexidade de tanto marear.
Quase metade das espécies de primatas está em risco de extinção. A notícia espalha-se pela televisão, jornais e afins aos gritos catastróficos. Indício que a coisa é mesmo grave. Admirável o nosso planeta. Redondo e robusto. Talvez frágil para quem o vê lá do alto. Iluminado e misterioso. Verde. Mas muito azul. Ao que parece, o único planeta conhecido a abrigar vida no sistema solar. Mesmo que existam, os extraterrestres não contam. Porque são verdes, muito feios e têm antenas na cabeça. Já chegam as parabólicas que polvilham as varandas e os telhados. E as paredes contíguas às varandas. Gostava mais daquelas que sobem aos telhados de braços bem esticados. Orientadas ao emissor mais perto. Quando o vento destrambelhava aquilo tudo, lá iam os homens ao telhado para as colocar na direcção certa e acabar com os chuviscos na sala. Era sempre uma emoção. Por causa dos riscos.
O ser humano anda por cá há um milhão de anos. Tempo bastante para perceber que o segredo é amar e não devastar. Que errar é próprio do homem. Insistir no equívoco é próprio dos idiotas. A evolução do homem foi coisa lenta e progressiva. Com muitos saltos. E surge o primeiro homo sapiens. A génese do homem moderno tem cerca de dez mil anos. E eu não acredito que alguém possa ser moderno ao fim destes anos todos. E as montras que se renovam a cada estação do ano? E os desfiles de corpos exercitados para aliciar mentes susceptíveis e carteiras em pele natural? Colecções para o frio. Para o calor e para a praia. Para o Inverno e para a noite. Padrões e feitios que se gladiam ciclicamente.
Os primeiros homens seriam ainda mais feios. Eu vejo-os muito feios. Grotescos e rudes. Uma mescla de homem e macaco. Muito peludos. Mas ágeis. Valha isso! Os macacos são uma espécie simpática. Continuam macacos. E divertem-se. Catam-se, coçam-se e brincam muito. Às vezes aborrecem-se e lutam uns com os outros. E gritam tanto! Afinal, sempre são os nossos ancestrais antepassados. Compreende-se a algazarra.
Outro animal que habita a terra é o lobo. É um bicho ruim. Muito associado à crueldade, rapacidade e ambição. O Capuchinho Vermelho, que o diga. Ou não é verdade que o lobo é mau e quer comer a incauta criancinha? Os pastores viram-se obrigados a criar cães pastores. Tudo por causa dos lobos. E a tia Rosa que me ameaçava com o temível bicho sempre que eu não comia a sopa? Mas Roma não. A maternal loba cuidou dos gémeos como se fossem seus filhos. Uma excepção aos hábitos do canídeo.
O macaco, o Homem e o lobo. O macaco fez-se homem. O homem age como se fosse lobo para aniquilar o macaco. E o lobo é que fica com a fama. Quem o diz é Hobbes que fundamenta a ferocidade entre os humanos homens. — o homem é o lobo do próprio homem. E o macaco é só macaco. Quietinho no seu galho.
E a notícia continua. Refere causas e consequências. E espanta-se. E o Homem perde a sua remota origem. Porque tem a mania que é lobo.
"O problema é que estes animais são facilmente atacados porque vivem em grupo e são barulhentos. Vai demorar a reverter esta situação porque são animais com relativa longevidade. É deprimente",explica Russell Mittermeier ilustre primatólogo.
E os homens não, senhor Mittermeir? Fazem tudo o que os macacos fazem. Mas com mais macacadas. Foram-se os dinossauros. Um dia destes os primatas. Tenho para mim que o Homem entra a seguir na linha da auto-extinção. Uma lobice, talvez, evitável. E como isto é cíclico, e acontece muito devagarinho, tenho pena de não estar cá para ver.
As brincadeiras dos meninos e das meninas do meu país acontecem no 2.º andar, Frente, de um imóvel situado por aí. Numa cidade grande ou pequena, tanto faz. Entretêm-se nos infantários desde as sete da manhã. Os mais crescidos só brincam aos intervalos. Em recreios de mosaicos. Poucos em chão empoeirado e lamacento. Uns e outros não têm condições. Os pais vão recolhê-los tarde. O tempo é pouco e gasta-se no banho e no jantar. Ficam-se a dever diálogos, partilhas e afagos. Os mais crescidos consolam-se com a televisão que está no quarto. E modernizam recados pela Internet. Até tarde. Muito tarde. No outro dia chegam à escola com a cabeça a dormir e com os dedos cansados de tanto escrever. Palavras encriptadas. Erros caligráficos. Abreviaturas inventadas. Estrangeirismos desnecessários. Mas escrevem e dialogam. Trocam afectos. Tudo à distância. Tudo filtrado por um monitor TFT. Tudo tecnologia de ponta. No quarto ao lado, os pais dormem um sono estafado e moído de anos de trabalho. Não dão por nada. Sonham que os meninos estão a dormir. Profundamente. E mesmo ali, dentro de casa, eles correm perigos estúpidos. Porque acauteláveis.
Os meninos do meu país brincam e conversam no quarto. Ou na rua. Até tarde. Tanto uns como outros não sabem que a vida é astuciosa. Que há pessoas sem escrúpulos. E eles são incautos. Mas hábeis a manobrar tecnologias. E fazem perguntas que os pais não escutam, por isso não respondem. Adormeceram sem tempo para dormir.
Os meninos da minha terra brincam na relva do jardim, convencidos que estão a jogar às escondidas numa seara de milho. Esticam-se em argolas e correntes persuadidos que estão a trepar às árvores. Olham para o lago com patos de aviário, como se eles próprios nadassem no ribeiro da aldeia da avó. Apavoram-se se um gafanhoto chega primeiro que eles ao escorrega. Gritam atormentados com a presença de uma libelinha. E garantem que são bichos esquisitos. Horrendos. Ferozes. E os bichinhos abalam espavoridos, sem compreender tamanha histeria. E vão contar aos outros animais que viram uns bichos com costumes requintados a berrar no jardim.
Os meninos da minha terra não têm chão para brincar. O alcatrão é negro e malcheiroso, mas eles gostam. A terra não, que suja. É lama e pó. E ervas e bichos. E árvores e flores. E frutos e céu.Choveu pouco, mas o cheiro da terra molhada provoca-lhes enjoos. O cheiro a hortelã, a orégãos e a coentros são fedores. Por isso, escrevem mensagens e usam a Internet para descobrir como é uma couve portuguesa.
E ao fundo da rua, onde existia uma horta com uma nespereira generosa, há buracos. Valas abertas à espera de alicerces. Amanhã, as nêsperas são janelas com aros cromados e os cortinados esvoaçam afugentando os pardais.
Lá dentro, indiferente ao vento e às borboletas, um garoto joga com uma bola virtual. Num jogo fantasiado. Com jogadores a fingir. Ao lado, pacotes de batatas fritas amontoam-se vazios.
O pai nunca o levou ao futebol. Não tem tempo. Na televisão da sala, a notícia sabe a calamidade nacional. E ele não percebe o motivo do alvoroço. Nem a causa da obesidade infantil.
Por formação, e por opção, sou mais dada às línguas românicas. Há muito tempo que Obélix entrou na minha vida. Trouxe amigos, também. E Gérard Depardieu. À universalidade da língua inglesa, muito pela potência do dólar e do petróleo, contraponho a cultura, o humanismo, a arte, a música, a história, o latim como berço civilizacional. Quem sabe se com tanta globalização, não voltaremos a falar uma língua só. Na busca do entendimento perdido. Hoje, abro uma excepção. Excepcionalmente! Só porque me lembrei do mundo, de uma terra e particularmente de uma pessoa. Com ela partilhei emoções, conhecimento, sorrisos, verdade, consciência, trabalho... na voz desta canção. Por isso, fui procurá-la. Até porque o intérprete não consta da lista dos meus preferidos. E voltei a ver lágrimas no rosto emocionado das hoje mulheres, outrora meninas. Admirável ter memórias! Porque o segredo é amar... Pour Toutatis!
Earth Song
What about sunrise What about rain What about all the things That you said we were to gain... What about killing fields Is there a time What about all the things That you said was yours and mine... Did you ever stop to notice All the blood we've shed before Did you ever stop to notice The crying Earth the weeping shores?
What have we done to the world Look what we've done What about all the peace That you pledge your only son... What about flowering fields Is there a time What about all the dreams That you said was yours and mine... Did you ever stop to notice All the children dead from war Did you ever stop to notice The crying Earth the weeping shores (...)
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]