Gosto de caracóis. Porque têm cara. Colo e muito sol. E com eles chega as mãos da minha mãe. Que persistência ela punha para que os meus fossem os mais penteados e arrumados da sala. Depois, ao domingo, saímos em fila pelo carreiro das salinas. Regressávamos a casa. E era o meu pai que os preparava. Nós comíamo-los num abraço profundo. Eu sei que não devia. Talvez, nem tenho bem a certeza. Isto de comer animais dita apreciações divergentes. Confesso que não tenho culpa que a palavra me encha a boca de orégãos. Muito menos que os bichos não revelem habilidades físicas excecionais e que fiquem rapidamente afastados de qualquer êxito desportivo. Incautos e ingénuos acreditam que o Sol nasce para todos. Quem lhes terá dito que deveriam pôr os "cornos" ao abrigo do dito? Não é um assunto pacífico. Não é... E os caracóis têm cornos? Apêndices, antenas... Vai dar no mesmo. E são ranhosos! Um pires de caracóis com duas cervejas, por favor.
Num reino muito antigo, havia um castelo. No alto. Pela colina escorriam pedaços de histórias. Passados de homens destemidos que se perderam pelo mar. E partiram engalanados de vontades e segredos. Conta-se que o castelo era habitado por uma moira encantada. Jovem e de enorme beleza. Felinamente sedutora. Aparecia frequentemente pelo recinto do castelo. Cantando e penteando os seus reluzentes cabelos negros como os fiapos da noite com um pente de ouro. Nunca prometeu riquezas a quem a libertasse do encanto. Meiga. Tão doce. Apareceu junto ao rio e entrou no velho castelo de tesouros guardados em baús decorados com ferragens de tempo. Das diversas formas que podia assumir, optou por uma. E escolheu ser gata. Guardiã do local e dos visitantes. A população mais antiga declarou que a Chana nunca se separou do castelo. É lá que dormia a sesta. Todos os dias. Depois, espreguiçava enigmas e ensinava caminhos dentro das muralhas. Visitava as ruínas da antiga igreja matriz e as ruínas do palácio dos alcaides da vila. Espreitava as salinas e assegurava que a terra era uma flor de sal.
No castelo velho, a Chana é uma gata bonita. É guia de profissão. Consta que ali permanecerá eternamente, tecendo idas e vindas e miando maravilhosamente, encantando quem a ouve, qual donzela enfeitiçada.
Confesso a relevância do ponto final e o gosto de ter um sempre pronto para usar. Há contextos que o exigem. Mas desgosto-lhe a prepotência. Os caprichos déspotas e eu não queria o fim de agosto. Fica-me a beleza rendilhada da admiração.
Admirável ponto de exclamação. Cumpre-se no fim das frases. Na dissemelhança dos outros. Distancia-se das letras para se albergar no coração. E, com as mãos, enrola afetos. Em cada esquina do corpo, acha o sublime sentido da surpresa, admiração ou exclamação. Despe a sorte das emoções. Multiplica os sentidos sem que se exponha nas palavras. Todas não chegam, tantas são demais. Galanteia as lágrimas. Descerra sorrisos. Segura os silêncios. Para perpetuar o olhar. É um sinal. E fica na minha memória a beleza rendilhada que o azul burilou a ponto de sol.
Oh, quão doces são as lembranças da minha meninice!
Gostava de me empenhar e poder fazer o que agosto ainda não deixou. Andar para trás para calar o relógio. Atirá-lo ao chão e dizer-lhe que bastava de ladrões do tempo. Saborear o perfume da terra e lamber o mar. Colher um ramo rubro de papoilas e enviá-lo para o céu. Tourear um touro e cair na arena sobre o bruaá silencioso das bocas desconhecidas que poisavam nas bancadas. Calar o ruido dos ruídos de tantas vozes difusas.
Apetecia-me apanhar sol na proa da traineira e ver o sol a cair e não o poder ajudar. Saltar para o rio e molhar-me de muito. Chegar à meta sem querer dizer o lugar. E falar para no meio das palavras chorar o silêncio num eloquente e enorme discurso. Poder fechar aqueles livros. Com o mesmo desejo com que um dia os folheei. Erguer-me na proa da mesma traineira azul e morrer descansadamente. Na elegância do azulado do rio.
Queria, agora que agosto já não deixa, desviar-me. Sem que me molestassem. Ou quisessem ver-me muito longe de mim.
fui até lá só para escutar o mar. e andar. foi uma viagem pequena pela margem dos abraços ao colo da maresia. havia uma delicada neblina que me aguentava de pé. olhos nos olhos com o vento que chegara antes de mim. as pessoas contavam vidas que eu não entendia. às vezes gritavam e eu não as ouvia. duas palavras roladas na areia. uma estava a mais. calámo-nos encharcados de azul. e lá do fundo vinha um canto doce. uma cantiga morna. tão quente.
fui até lá só para sentir o perfume que sobrou da pele daquela tarde. e vi que houve um tempo em que me escondia nos teus dedos não fosse a areia querer.
fui até lá para ver o mar. o barco já não estava à minha espera. apenas o mar atirava satisfeitos sorrisos indiferente a quem chegava. ou partia. e as ondas navegavam sozinhas.
fui até lá para me lembrar que roubavas o mar só para mim. no verão.
a traineira desbotada. o mar satisfeito na desigualdade do azul. o sabor da maresia. um abraço consistente. a dureza da sorte das marés. as mãos amansadas pelas cicatrizes. um mergulho danado. o suor que rega a agilidade do corpo. as lágrimas despejadas na areia. o colo do refúgio. um porto ancorado. o grito da gaivota. a noite escondida. a lua clandestina que cuida do espaço. o mar sem idade. o sol que nasce na barra. o cais da saudade. o retorno ao leme de uma imensidade amainada. a alcofa de peixe no chão. a riqueza na mesa. o medo quebrado. uma concha de pão com sabor a espuma que acaba na areia. o prazer do sal na boca do pescador. um emaranhado de malhas remendadas pela paciência dos dedos. na mesa a traineira corta a espuma da maré. a gargalhada imperial. e na minha língua a sardinha faz-se lenda. numa ancoragem de emoções.
imploro-te, doce senhora. o supremo encanto da tua sombra.
concede-me, senhora, o que me segredaste ao ouvido enquanto dormia.
rogo-te o verão colorido e o vento sereno. porque eu quero ser como o tempo. e desarrumar os meus dias. como as rosas perfumam as pétalas. e poder ficar.
agora mais nada. o verão caiu no chão. com o sol na barriga. neste instante, lambe o doce suco que lhe ornamenta as mãos. e agradece o esquecimento dos deuses. que pernoitem longe. que pernoitem.
Que faço eu quando o azul é tanto? Que sei eu já se ainda não me mostraste todas as cores que tens nas mãos? Que percebo eu quando não me dizes o que eu vejo? Que caminho percorro se o cantar da minha respiração não se diz com palavras?
Eu vou! Para me agasalhar neste manto de azul. Um manto sublime. De ouro e prata. Com rendas trançadas com fiapos de luz.
Eu vou! Para escrever um poema com os silêncios das palavras que não sei dizer. Mas que escrevo com a tinta das marés. Guardo-o no coração. Como quem guarda a doçura de um segredo. Depois, vou enxugar o meu corpo molhado.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]