… estendendo fios de desalento na seda da luz… entro no casulo de sonhos suspensos... na inaptidão da aparência... sairei crisálida da esperança no alegre voo da essência… mesmo que exterminada por caçadores de polinizadoras borboletas…
Acordei destapada pelo Sol que entrara afoitamente pela janela. Que descuido, o meu! Assim, como se eu fora raios que ele desbaratara em criança… Não era! Nem sou!
O meu corpo desejou chuva. Ao menos, ela chorava a meu lado. Molhávamos as mágoas. Emergíamos das dores. Do alto. No aprumo de ser.
Subitamente, lembrei-me que não posso apressá-la. Ela cai quando quer cair. E tombar. Na genialidade de acontecer. Escorregar. Alcoolizado desejo de molhar. Tantos rostos! Muitos! Copiosamente…
E eu cheguei a acreditar que ela apenas molhava o meu… Só que nunca aconteceu. Cheguei a pensar que estava apaixonada, mas descobri que era apenas desejo.É que eu sinto pela chuva a mesma coisa que sinto pelo Sol...
[quando não sei de que falo, calo-me. E olho para lá...]
Não sei do que falo. Não sei conversar de todas as verdades em que paro. Perco-me e não vejo a minha. Por vezes, tento explicar mentiras. Caio no momento em que encontro outras mais.
Não sei de que falo. Na verdade, não consigo comentar o luar. E como a Lua se enfeitiça pelo mar. Não sei de que falo, quando me calo diante da beleza daquela roseira que enfeitava a paciência da minha mãe. E ela nunca lhe entendeu a efemeridade.
Não sei de que falo. Minguo na elevação do requebro da gargalhada de uma criança. Emudeço a escutar o marulhar do mar. A acontecer. Não sei de que falo se, por acaso, me debruço no olhar.
Fala-me daquilo que eu não sei! Para que eu possa falar…Agora, não sei de que falo. Tão-pouco se quero falar.
Não sei de que falo. E depois? Não importa… Desvendo-me dentro do silêncio com que as palavras me protegem. Ah! Eu sei o que é. No entanto, não sei explicar.
Ai, quem me dera correr para lá. E chegar! Depois, rebolava e ria à gargalhada. Calava-me. Para ouvir os piscos a voar. E invejar-lhes a beleza da cor. A magia da voz. A afinação dos trinados na frescura da tarde. Tão tarde! O domínio apenas existe no nevoeiro da minha visão. Sobram vulcões de urbanidade de alicerces construídos. Os piscos aborrecem-se com os rumores das betoneiras.
Ai, quem me dera estar lá. E ficar! Saltitava de flor em flor. Escolhia-as pela cor. Sentava-me. Por estranhar efemeridade. E abençoar-lhes a fragrância. O apego do caule. A verdade do viço na quietude da manhã. Tão cedo! Agora, as pétalas de cetim perduram pobremente no tacto dos meus dedos. Permanecem chãos de papoilas que eu matizo, se me importuno. Eu aborreço-me com os alvoroços dos jardins.
E agora que não estou. Eu sei! Sempre que chovia, eram as papoilas que me abrigavam. Na fragilidade das varetas. No agasalho do pano que olhava para a chuva. Para lhe descobrir o destino. A água esquecia-me e dirigia-se abundantemente para a raiz. Sustento. Eu apenas a honrava. Hoje enalteço-a. Nua no desassossego quente do Sol. Está escuro e eu olho para lá. E percebo porque tanto gosto da chuva… e de guarda-chuvas vermelhos.
Lá fora, a chuva chove miudinha. Ouço-a com o meu corpo inteiro. Sinto-lhe os afagos afeiçoados. Gosto dos beijos tranquilos com que orvalha as minhas mãos. Do enleio apaixonado fluindo pela avenida. Dissolvemo-nos num único bailado. Num só e apaixonado acto. Assim, de mão dada. Ela caminha a meu lado entoando ladainhas do provir. E é na verticalidade do seu cair que eu multiplico os meus afectos. Os beijos molhados autenticam o nosso amor.
E fecho os olhos... instala-se a incapacidade de dizer. E num implorado sossego, são os sonhos que vertem ruídos pelo alcatrão. As gotas dela são as minhas lágrimas que se confundem na ternura atrevida do seu olhar. Sinto-lhe o sabor na minha pele e os meus olhos mendigam desejos dissolvidos antes do nascer do Sol. Amo-te...
Oiço um caminhar apressado. Passadas largas dispersam-se na calçada à procura de espaço... Uns olhos verdes espreitam-me na obliquidade do chapéu-de-chuva. Sem dizer adeus, omitem o antes que choveu. Enlaço-me na verdade da chuva... aconchego-me no seu peito e danço com ela. Rodopiamos até de madrugada. Depois, esvaio-me em cansaços e adormeço esgotada. Desenrosco-me pela manhã.
A chuva cai... A chuva só pode cair de pé. Pela sua lealdade. Se não fosse, não tombaria assim. Venturosa água que me encharca a alma. Que lava o sangue espargido no chão... Seja chuva, assim na terra como no Céu!
Aqui sou seu. Sem correntes, sem algemas, sem peias que lá fora me impõem. Aqui revelo-me como sou. Aqui dispo-me de circunstâncias conjunturais. Aqui sou apenas refém de mim. Aqui posso colorir a liberdade com as cores que eu sei de cor... Aqui digo sem medo de represálias. Aqui digo verdades. Aqui digo mentiras. Aqui finjo ambas.
Aqui minto descaradamente. Tudo é fictício, tudo é teatro. Na verdade, todos enganamos, todos mentimos. Máscaras e mais máscaras que se revezam entre a comédia e a tragédia. Nada as impede de percorrer ruas, cidades, países, o mundo. Jardins proibidos. Paraísos inventados. Vidas fingidas. Aqui, há que simular, há que aparentar. Tudo é hostil, tudo me irrita, tudo me afecta. Tudo amo. Tudo se constrói num imenso deserto mental do qual nem sempre soube, ou não quero, sair.
Aqui mostro-me transparente. Exponho a minha nudez aos vosso olhos. Aqui me oculto na opacidade do meu corpo. Aqui exibo a minha pele translúcida. Aqui sou como sou. Ficção que a vida escreveu. Sou Menina e Moça que já fui; errei por Cidades e as Serras; sou Gente Singular. Sou Húmus, sou Clepsidra, sou Tanta Gente, Mariana... Perdi-me no Labirinto da Saudade e reencontrei-me no Vale da Paixão. Chorei quando O Principezinho me fez sobra, sorri ao ver a minha morte julgada na Barca do Inferno. Colhi A Maior Flor do Mundo, fiquei estupefacta perante a Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho. Irmano-me na sorte de Os Bichos e até sei Um Segredo sobre passarinhos... E porque a Demanda se faz desejo de cor nunca vista, eu não Sobrei da História dos meus Pais, seguramente. Aqui posso partir à descoberta do Conto da Ilha Desconhecida saindo pela porta das decisões. Ou aguardar calmamente à porta dos obséquios. Aqui posso Falar Verdade a Mentir ...
Aqui, nem sempre sou eu! Aqui eu posso não ser eu, sendo eu! Eu cumpro-me no paradoxo de ser e não ser. Eu sou porque tu existes... Eu sou produto da evolução da minha espécie e espero que a selecção natural actue sobre mim e melhore a minha adaptação a um meio que fere e que dói.
Ignoro de quem descendo. Rezo para que não tenha em mim um réptil derrotado por um qualquer dinossauro.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]