O roxo alastra-se pela alegria do vinho num copo descansado no alabastro do dia. O jornal cai pelo chão amarrotado pelo deserto das notícias repisadas e os teus olhos perdem-se na contemplação do tempo que escorrega pela ladeira ornada de sardinheiras vermelhas. São flores sentadas nos postigos das velhas que se benzem e cantam rezas muito restritas e pendentes nos retratos alinhados em cima das cómodas. São memórias de sombras vagas que lhes definem confortos do luto dos vinhos. E tu seguras as paredes nuas do quarto. Sentes a ausência das lágrimas. Pensas que a pele é insuficiente para absorver o líquido que escorre do copo. E sais. Lá fora estugas o passo. Enquanto eu arrumo os copos já esquecidos do momento. Apenas as sardinheiras exultam o esmero da cor.
Ela subia a calçada ao ritmo do andamento das marés. Acompanhada pela ténue luz da lua. No corpo, levava a ondulação do vento. Maresias de palavras naufragadas. Com as mãos, abalroava dunas de doces ventanias. Nos cabelos, resplendecia a derrapagem das gaivotas. Pulava naufrágios e destroços. As pontas dos dedos pegavam pedacinhos de horizonte. Emigalhas de espuma recebidas à noitinha. Içou as velas. Entrou. E amainou o seu incerto navegar. Talvez um dia as perguntas, que ainda constrói, desapareçam.
Na ombreira das portas, as mulheres salivavam desinteresses desfeitos nas bocas deslavadas de inveja.
No postigo das portas, os homens lambiam-lhe o andar. Sempre que subia aquela calçada, ela calçava sapatos de licor de amora.
Ai, quem me dera correr para lá. E chegar! Depois, rebolava e ria à gargalhada. Calava-me. Para ouvir os piscos a voar. E invejar-lhes a beleza da cor. A magia da voz. A afinação dos trinados na frescura da tarde. Tão tarde! O domínio apenas existe no nevoeiro da minha visão. Sobram vulcões de urbanidade de alicerces construídos. Os piscos aborrecem-se com os rumores das betoneiras.
Ai, quem me dera estar lá. E ficar! Saltitava de flor em flor. Escolhia-as pela cor. Sentava-me. Por estranhar efemeridade. E abençoar-lhes a fragrância. O apego do caule. A verdade do viço na quietude da manhã. Tão cedo! Agora, as pétalas de cetim perduram pobremente no tacto dos meus dedos. Permanecem chãos de papoilas que eu matizo, se me importuno. Eu aborreço-me com os alvoroços dos jardins.
E agora que não estou. Eu sei! Sempre que chovia, eram as papoilas que me abrigavam. Na fragilidade das varetas. No agasalho do pano que olhava para a chuva. Para lhe descobrir o destino. A água esquecia-me e dirigia-se abundantemente para a raiz. Sustento. Eu apenas a honrava. Hoje enalteço-a. Nua no desassossego quente do Sol. Está escuro e eu olho para lá. E percebo porque tanto gosto da chuva… e de guarda-chuvas vermelhos.
Ela trazia calças de ganga azul-amortecido. Uma ampla camisa branca-devassada. Botas de camurça preto-quebrado. Os cabelos amarrados com sombras cinzentas. Naquele tempo, ela desnudava-se de aparatos trajados.
Um dia, encontraram-se no olhar, à hora de almoço. À noite, deram as mãos e amaram-se até de madrugada. Como o Sol ama a Lua que se pôs a chorar. O Sol garantiu que não. Que todas as noites dormiria sobre o seu corpo até ele acordar. A Lua tornou a chorar. O Sol não lhe deu razão. A Lua chorou mais uma vez. Mediu a distância e num segundo pressentiu o caos. E o pranto foi tamanho que todas as constelações soluçaram também. As lágrimas de Pégaso galoparam pelo céu, por tanta incompreensão. Mas todos souberam que Perseu e a encantadora Andrómeda também se desejaram.
Agora, ela veste-se mais bonita. Só enverga vestidos-paixão. E tenta voar…
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]