Fui a feira. Não queria ir, mas fui. Temia o barulho das cantigas. O universo ativo das vozes. Os apitos estridentes que gritavam a partida. Quando o silêncio era um desejo maior.
Fui à feira. Rodopiei nas gargalhadas do carrossel. Subi ao céu e colhi um ramo de estrelas. Depois lambi as mãos numa constelação de sabores, enquanto os meninos comiam histórias que eu sei sobre o algodão doce.
E foi no voluteio do carrossel. Foi no preciso momento em quea girafa olhou para mim que o silêncio se pôs. Apenas eu o vi. E uma enorme bola de fogo caiu no horizonte da minha infância quando os olhos dele me chamaram.
Hoje, sou eu na plenitude de mim. Sem efabulações, na mais inteira verdade. Assanhada. Desapontada. Impotente. Espoliada. A história, que vos que contar, diz-se em poucas palavras.
Chegou o dia da consulta de ortopedia que, confesso, aguardava com alguma ansiedade. Aguardei mansamente cerca de três horas… Ouvi o meu nome… fui. O médico perguntou-me o motivo da minha presença… lembrei que tinha fracturado o escafóide… pois e tal… é preciso fazer RX… tome lá a requisição… vá lá acima… Perguntei-lhe se podia deixar o casaco e a pasta no consultório, ele respondeu que sim, que fosse depressa. Eu fui…
Radiografia na mão, aí venho eu escadas a baixo com a expectativa na ponta dos pés. Já na sala que de acesso ao consultório, relatei à enfermeira o que andara a fazer. Pedi-lhe que informasse o senhor doutor ortopediata que eu já tinha o RX…
Tombei fuzilada de espanto na cadeira mais próxima… O homem acabara o turno, enquanto me radiografavam a mão!! E como um ortopedista, que até é um homem, tem mais que fazer na vida do que aturar ossos estupidamente quebrados… foi-se embora.
Assim. Sem deixar rasto, incomunicável. Todos o procuraram. Todos ouviram o meu protesto. Excepto ele que terminara o turno… E foi assim que, pela primeira vez na minha vida, tive uma meia consulta e uma meia radiografia, sem relatório, que nenhum médico viu, nem quis ver… por questões de ética.
O senhor assina como médico ortopedista… de nome Doutor António Nunes Godinho. E ali mesmo, num hospital público deste país, que ele me ensinou o que é falta de profissionalismo. De ética. De atenção pelo doente. De respeito pelo contribuinte. De consideração pelo país. O senhor doutor, fiquei a saber que será candidato a Presidente da Assembleia Municipal de Azambuja, com o bandulho farto de pressa íntima, deixou o trabalho a meio… E que importância tem, se ganha o mesmo? Irra! Só posso estar a ver mal a coisa. Afinal amanhã é véspera de um longo fim de semana…
O homem não me conhece de lado nenhum. E diga-se, nem foi ele que partiu o meu destroçado escafóide… Só que não sei que fazer com uma meia consulta, uma meia radiografia, um meio médico e uma tarde inteirinha perdida no hospital… Nem responder aos meus filhos quando me sujeitarem ao interrogatório do tipo " O que disse o médico?". Não vão perceber que o desgraçado se calou... e eu não vou ser capaz de explicar...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]